Uma nova ameaça aos Waimiri-Atroari
Por Liana Melo/Colabora – Quase meio século depois de ter sua população reduzida de três mil para 400 durante a construção da rodovia BR-174, os Waimiri-Atroari, etnia indígena que habita área entre o nordeste do Amazonas e o sudeste de Roraima, sentem-se novamente ameaçados por uma megaobra governamental em sua região – desta vez, o Linhão de Tucuruí, linha de transmissão de energia de Manaus (AM) a Boa Vista (RR), que rasga a terra indígena. A ameaça aos Waimiri-Atroari tornou-se uma das duas primeiras pautas da recém-criada Comissão Arns, formada por 20 intelectuais com experiência na defesa dos direitos humanos para agir em caso de violações no Governo Bolsonaro – a outra foi a ação policial que deixou 15 mortos em Santa Teresa, no Rio. Neste Dia Nacional do Índio, os Waimiri-Atroari estarão em festa. É dia da maryba, um ritual de iniciação quando um menino que acaba de aprender a falar, se transforma num afortunado caçador. E, assim, eles vão mantendo a tradição alheios ao discurso oficial de defesa da integração dos povos indígenas à sociedade ou submissão deles aos interesses econômicos.
A briga dura oito anos e começou quando a Transnorte Energia ganhou o leilão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), no governo Dilma Rousseff. Após o impeachment, Michel Temer herdou a disputa, que, no governo Jair Bolsonaro, ganhou contornos bem mais agressivos e vem deixando o povo indígena em estado de alerta. É a primeira vez, desde a redemocratização, que um governo ameaça sair da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Se cumprir o prometido anunciado em Genebra, no começo de março, o país deixará de ser obrigado a promover consultas prévias, como vinha fazendo até agora, todas as vezes que aprovar projetos que afetem a vida de populações indígenas e tradicionais.
Passar o linhão na marra, como parece defender o governo, é acrescentar mais um episódio violento na história de um povo que construiu sua identidade guerreando, o que rendeu aos Waimiri-Atroari a reputação de bravos e arredios. A saga dos kinja (ou “gente de verdade”), como esse povo se autodenomina, é a melhor tradução de uma disputa que vem se agravando, à medida que o governo avança sobre o desmonte da política indigenista. A violência contra os povos indígenas recrudesceu a partir do primeiro turno das eleições presidenciais. Segundo o relatório “Conflitos do Campo Brasil – 2018”, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), das 276 ocorrências de conflitos por terra registrados entre essa data e o dia 31 de dezembro, 56 deles foram contra indígenas, o que representou 20,5% do total.
Sair da Convenção 169 é apenas mais uma das manobras que o governo pretende adotar para acelerar o linhão e avançar sobre as terras indígenas. A outra é tão ou mais perigosa. No final de fevereiro, o presidente assinou decreto declarando a obra de interesse da defesa nacional, devido ao conflito no país vizinho – a Venezuela faz fronteira com Roraima e é de lá que vem a energia que abastece o estado, o único da federação que não está conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN).
Para o procurador do Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas, Fernando Merloto, “o linhão de Tucuruí não se encaixaria na categoria de defesa nacional, simplesmente porque a obra vai levar de dois a três anos para ficar pronta”, sem contar o tempo já perdido desde à realização do leilão, em 2011. O MPF do Amazonas entrou na briga em defesa da etnia e já protocolou um conjunto de ações.
O advogado dos Waimiri-Atroari, Harilson da Silva Araújo, diz que seus clientes exigem ser ouvidos, mas que, apesar de questionarem a construção do linhão, nunca chegaram, de fato, a impedir que a Transnorte de realizar o Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Após o documento ser traduzido para a língua dos Kinjas, o povo indígena enumerou 37 impactos ambientais na obra, dos quais 27 deles “irreversíveis”. O EIA ficou pronto em 2015. Está prevista, por exemplo, a construção de uma torre a cada 150 metros para viabilizar o linhão, de 172 quilômetros. A cada torre levantada, se calcula um área desmatada do tamanho de um campo de futebol. A empresa não tem ainda a licença ambiental.
O linhão de Tucuruí já se transformou numa montanha de papel na Justiça e chegou, no último dia 18 de março, à mesa da procuradora geral da República, Raquel Dodge, que já recebeu lideranças indígenas Num documento, de 17 páginas, a Associação Comunidade Waimiri-Atroari (ACWA) faz um histórico do imbróglio e questiona: “Será um filme de terror que vai se repetir? Será que teremos que suportar novamente o massacre do nosso povo? Será que a sociedade brasileira está disposta a bancar mais essa violação de direitos humanos em pleno século XXI? Será que teremos que suportar novamente o massacre do nosso povo?”
O filme de terror ao qual os Waimiri-Atroari se referiram no documento entregue à procuradora é a construção da BR-174. A obra foi permeada por mortes, muitas mortes. O ano era 1968 e, em plena ditadura militar, o governo decidiu pela construção da rodovia, que teria uma intersecção com a Transamazônica. À época, a ideia era ocupar a região e os militares alegavam que os indígenas não poderiam ser um empecilho ao desenvolvimento do país – a mesma alegação feita hoje, pouco mais de 50 anos depois, pelo presidente Bolsonaro. A obra demorou seis anos para começar, porque os índios, honrando a fama de guerreiros, resistiram. Padres também morreram, assim como representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), despachados para a Amazônia para acalmar os ânimos.
Há 45 anos, o genocídio de 2.500 índios
Em 1974, o governo acionou o Batalhão de Infantaria de Selva (BIS) e anunciou que a BR-174 sairia na marra – o que parece ser a mesma estratégia adotada pelo atual governo. Foi uma chacina. Quarenta cinco anos depois, sobreviventes lembraram das cenas e referiram-se a elas como “genocídio”. Estes sobreviventes declararam à Comissão Nacional da Verdade que morreram 2.500 índios. A população dos Waimiri-Atroari caiu de quase 3 mil pessoas para menos de 400 indígenas. Atualmente, o povo Waimiri-Atroari soma 2.090 indivíduos.
O Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas vem tentando responsabilizar Exército brasileiro pelo genocídio. Na ação, que foi acolhida por uma juíza federal, o MPF cobra indenização, no valor de R$ 50 milhões, e desculpas do Estado brasileiro. Nem uma coisa nem outra ainda foi feita: o Exército se recusa a aceitar a acusação e nega ter cometido qualquer erro.
Os Waimiri-Atroari ainda não tinham se recuperado do massacre provocado pela estrada, quando a terra indígena virou palco da cobiça de garimpeiros. Sob o território, uma mina de cassiterita. Em 1981, o governo militar liberou alvarás de pesquisa e de lavra do minério para a Paranapanema. Mais conflito. Oito anos depois, 30 mil hectares da terra indígena é inundada para viabilizar a construção da Hidrelétrica de Balbina. Foi a primeira vez que um indigenista entrou em cena para negociar com os índios. O velho, ou Thiamyry, como ficou conhecido pelos índios o cearense José Porfírio Carvalho, acabou sendo contratado pela Eletrobrás, hoje Eletronorte – estatal que faz parte do consórcio Transnorte, empresa dona do linhão de Tucuruí. Foram 26 anos trabalhando na empresa, período no qual ajudou a construir o Projeto Waimiri-Atroari (PWA).
A sucessão de arbitrariedades sofrida pelo povo Waimiri-Atroari fortaleceu o grupo. O povo indígena vive numa terra de 2,5 milhões de hectares, onde estão espalhadas 25 aldeias. Todas as decisões são tomadas por consenso e foi, consensualmente, que construíram o Protocolo de Consulta ao Povo Waimiri-Atroari – uma cartilha bilíngue, de 55 páginas, onde contam sua história e apresentam os motivos pelos quais devem ser ouvidos pelo governo para qualquer obras em seu território.
Enquanto o indigenista Porfírio esteve vivo – ele morreu há dois anos -, os Waimiri-Atroari mantiveram-se os mais afastados possível do convívio com o homem branco. Visitas eram dificultadas ao máximo. Seu legado, no entanto, rende frutos até hoje. Ele é o autor do PWA implementado pela Eletronorte como ação de indenização pelos impactos provocados pela hidrelétrica de Balbina. Renovado em 2013, a empresa se comprometeu, à época, ao pagamento de R$ 5,8 milhões por um período de dez anos. No ano passado, período estipulado para entrar em vigor a redução dos 30% no valor do reembolso, a empresa partiu para o contra-ataque e ameaçou romper o acordo histórico, caso o linhão de Tucuruí não saísse do papel. Procurada, a empresa não deu retorno.
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