Vila Nazaré: para além do direito de ir e vir, o direito de permanecer
Realidade de vida da comunidade é desrespeitada com reassentamento em condomínios distantes, dizem as famílias
Com uma população estimada em seis mil habitantes, a 10 quilômetros do centro de Porto Alegre está localizada a vila quase sexagenária Nazaré. Como em muitas vilas e bairros das periferias espalhadas pelo país, lá quase nenhuma rua é calçada e a manutenção de esgoto e água é irregular, com casas de alvenaria, madeira e outras consideradas inabitáveis. Fruto da desassistência e do descaso do poder público. Mesmo assim, é território de construção de histórias de vida de mais de duas mil famílias, que agora têm seu destino marcado pela remoção, para dar espaço à ampliação do aeroporto Salgado Filho. Aos poucos, escombros do que um dia foram casas vão surgindo. Entre promessas e incertezas, o principal desejo dos moradores é permanecer no local.
Em mais uma reportagem sobre a questão da moradia em Porto Alegre, é sobre este território em disputa e sobre as vidas que o constituem que o Brasil de Fato RS fala. Disputa que tem se tornado comum nas grandes cidades: de um lado, as pessoas e tudo aquilo que elas construíram com muito esforço; de outro, empreendimentos que, normalmente, não beneficiam as comunidades atingidas.
Nos últimos meses, o processo de remoção tem se intensificado, bem como a resistência da comunidade. No último sábado (27), os moradores se reuniram com representantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST RS) e da Associação dos Moradores da Vila Nazaré (Amovin) para receber a visita do jornalista alemão Christian Russau. Ele tem acompanhado as manifestações dos moradores contra a decisão da concessionária Fraport, empresa alemã ganhadora da exploração do principal aeroporto gaúcho por 25 anos. Na segunda-feira (29), os moradores fizeram uma caminhada contra a remoção.
Realidades desconsideradas
“Eu quero ficar aqui, não quero sair. Para nós é ruim sair de um lugar que estamos acostumados. E onde eles querem colocar, que é no Timbaúva, eu não quero ir. Eles estão nos tratando como cachorro, não estão nos tratando como pessoa”, alega a senhora Vânia Maria Soares, 62 anos, que mora há quase 40 anos na comunidade. Ela vive em um sobrado de alvenaria, na via de chão batido denominada rua A. No outro lado da rua, os escombros da casa de uma antiga vizinha denunciam o andamento das remoções. Ao lado, está uma farmácia popular, que foi fechada.
Vânia explica que sua casa abriga mais de um núcleo familiar, já que na parte de cima moram a sua filha Joseane, o genro e o neto Cainã, de dois anos. No pátio, ficam árvores que contribuem na diversificação da alimentação. “Tem frutíferas, laranja, banana, tudo eu que plantei, aqui tem história”, conta. Na peça mais à frente, que hoje ela mantém com as janelas fechadas devido à incerteza do futuro, fica uma ferragem que ajuda na renda da família e que ela teme perder caso tenha que se mudar. Particularidades que passam longe das metodologias e cadastros de reassentamento.
Ferragem fica junto à casa de Vânia e sua família / Foto: Marcelo FerreiraO Departamento Municipal de Habitação (Demhab) considera um comércio à parte de uma residência somente se há um banheiro separado. Estabelecimentos que não tem banheiro, ou são anexos à casa, são considerados como um imóvel só. Dessa forma, não são passíveis de indenização. É o caso da ferragem da Vânia e de outros diversos estabelecimentos da comunidade. De acordo com ela, o imóvel oferecido para sua família é uma “casinha de três peças e um banheiro”, completamente díspar do sobrado onde mora.
A maioria das ruas da Nazaré é de chão batido e identificada por letras. Há também becos. Vânia conta que a falta de calçamento e de saneamento sempre existiu. Mesmo assim, afirma enfaticamente que quer permanecer. “Minha vida foi sempre aqui, meus amigos estão aqui. Como vão me largar em um lugar que não tem nada, se toda semana eu tenho que ir no hospital?” Há três meses, revela, fez uma cirurgia no pulmão, sendo a questão do afastamento do local proposto para o reassentamento outro fator preocupante. “Meu objetivo é criar meu neto na Nazaré. Não quero perder a convivência que tenho aqui”, finaliza.
Opções oferecidas
Dois condomínios foram construídos para abrigar as famílias da Vila Nazaré. Foram construídos com recursos da Caixa Econômica Federal, obtidos por um acordo entre o município, a União e o banco. A obra é financiada por meio do programa Minha Casa Minha Vida. Surge daí a incerteza para alguns moradores, aponta Daniel Alex da Silva Dutra, mais conhecido como Alex, 44 anos, presidente da Amovin e da ONG Instituição Criança Feliz Nazaré. Um dos requisitos para ser contemplado pelo Minha Casa Minha Vida é ter renda familiar de até R$ 3,6 mil. “Se a renda da família ultrapassa esse valor, a gente não ganha a casa, não entra no programa minha casa minha vida”, aponta.
O condomínio Senhor do Bom Fim, localizado no bairro Sarandi, tem 364 unidades habitacionais. Fica a cerca de 5 km da vila, a 14 km da região central da cidade. Já o condomínio Irmãos Maristas, na vila Timbaúva, bairro Rubem Berta, que está em fase de conclusão, terá 1.300 unidades, fica a cerca de 10 km da vila e 20 km do centro. Alex comenta que ambos os condomínios são bonitos, com uma megaestrutura. Contudo, além da distância, como é o caso do Timbaúva, em que uma viagem de ônibus ao centro pode levar de uma a duas horas, não foi feito um estudo socioeconômico que comporte a realidade dos moradores do local, no que diz respeito à perspectiva familiar, à estrutura das casas e à questão de sustento.
De acordo com Alex, até agora não foi apresentado um plano de execução de remoção. “Eles não consideram residência aquela casa ou estabelecimento que não tem banheiro. Não consideram residência aquela casa colada à outra, então chamada de coabitação. Os núcleos familiares não estão sendo considerados, por isso, para eles, nós temos em torno de 1300 famílias”, afirma. Além do mais, complementa, uma troca “chave por chave” não seria justa para as famílias, uma vez que estão abrindo mão de casas, em diversos casos, maiores do que aquelas a que estão sendo destinadas. Em sua avaliação, o que se quer é colocar todo mundo lá pagando o menos possível.
“Querem retirar nossa comunidade, até mesmo nisso eles fazem sorteios. Tu vai lá e participa do sorteio para ver se tu vai ganhar uma casa ou um apartamento. E daí, tu podes ser contemplado com o quarto andar, como é no Timbaúva, ou uma casa, sem considerar se serão idosos que precisariam estar no térreo”, exemplifica.
Incerteza comercial
Na Nazaré, há mercadinhos, bares, brechós, além de diversas outras atividades que são realizadas dentro das residências dos moradores. A posição oficial do Demhab é de que os dois condomínios contarão com unidades comerciais para atender às necessidades das famílias que obtêm renda do comércio local. Prometem, ainda, que haverá creches nos locais e atendimento de saúde nas regiões. Alex conta que, no Senhor do Bom Fim, estão construindo quatro espaços para comércios. Contudo, na área que a Fraport exige a retirada das famílias, que é a área de reza, existem mais de 30 comércios. “Tem gente que já está no Senhor do Bom Fim e que o comércio dele não existe mais, foi demolido pelo Demhab. Ele está lá, pagando água e luz, mas sem ter o comércio dele para trabalhar. Há outras pessoas que estão lá, mas que ainda mantêm seu comércio aqui na vila, que não deixaram demolir o comércio, moram lá e vêm trabalhar aqui. Essa foi a forma que o pessoal achou para manter o seu sustento. Para quem o comércio foi destruído, está sem nada. É uma realidade bem cruel para nossa comunidade”, lamenta.
Noeli Fátima da Silva Gomes e José Luiz, casados há quase 39 anos, moram na vila desde o final da década de 70. Eles possuem um mercado há 22 anos. De acordo com José, o comércio que a prefeitura diz que será construído terá uma metragem inferior à do estabelecimento atual. Noeli, por sua vez, destaca que todo mundo se conhece na vila, o que traz segurança. “Podemos trabalhar até as 10 horas da noite, se quiser dá para trabalhar a noite toda. Nunca fui assaltada. Para gente vai ser um transtorno, eu ando nervosa porque eu não queria sair, saindo daqui vou ficar insegura, mas vamos lutar”, assegura.
Ela conta que, quando chegou na Vila, não havia água nem luz. Não havia ruas, apenas mato, e as pessoas foram construindo suas “casinhas”. Na época, recorda, botaram duas torneiras na rua pública. “Depois colocaram a luz carente, em 82, e pegávamos água também no poço da vila Pepino, ou ali na fazenda ao lado onde eles estão pedindo ampliação”. Atualmente, o casal vive em uma casa de alvenaria, ao lado de três filhos de sangue e uma filha de “coração”. “Meu filho do meio mora comigo, o meu nenê [mais novo] mora ao lado. Cedi três peças para ele morar perto da minha casa. Aqui eu sinto segurança, por que eu me criei aqui, criei meus filhos aqui, eu conheço as pessoas desde pequenas. É tudo uma família, é uma vila grande mas todo mundo se conhece, são pessoas que a gente confia”, conclui.
Recicladores desassistidos
Outra realidade socioeconômica ignorada no processo de reassentamento é a de quem vive da coleta e revenda de material reciclável. A estimativa, segundo Alex, é que se tenha de 40 a 45 pessoas que dependem da atividade. Uma dessas pessoas é o senhor José Carlos, mais conhecido como Cal, de 53 anos. Mora na vila desde os 13 anos e, assim como seu pai, se criou em cima da carroça. Ele conta que, com o trabalho de reciclagem e coleta de materiais, conseguiu sustentar sua mãe, hoje falecida, que tinha diabetes. “Trabalho com lixo seco e faço carreto na estrada, [arrumo] jardim, corto árvore. Meu pai também tem um cavalo e continua na ativa”, diz.
Quando sua esposa faleceu, se tornou pai e mãe dos três filhos, Caue e Cauan, de 18 anos, e Cauane, de 15 anos. É com a reciclagem que garante o sustento da família, conta. Além do cavalo, Cal também cria porcos, cultura herdada da sua mãe. “Quando a minha mãe veio morar aqui, tinha um chiqueiro, quando estávamos perto dele e víamos o avião passando, a gente ficava com medo e corria para dentro de casa, e a mãe dizia ‘não, Cal, ele não vai cair’”, recorda.
Assim como ele, suas cinco irmãs trabalham com reciclagem, sendo três delas mães solteiras. Enquanto Cal faz o serviço na carroça, seus parentes trabalham com kombi e carro. Ele explica que trabalha próximo à avenida Sertório, via de grande circulação que dá acesso à Nazaré. Com a mudança para a Timbaúva, além de ficar a duas horas de distância para fazer o trabalho com a carroça, não terá nenhuma garantia sobre a manutenção de local para manter os cavalos ou a sua criação de porcos. “Como ele vai fazer, se não tem lugar para os animais também? Não fizeram um estudo para ver como vai ser a vida de quem está nessa situação”, observa Alex.
Em relação à Timbaúva, há também uma outra questão que o poder público desconsidera, que é a segurança de quem está se mudando para a nova área. Além da vila Nazaré, relata Alex, tem também as comunidades Jardim Três Cachoeiras, Fernando Mendes e Mario Quintana, bem como outras ao redor, que não se dão bem entre si. Na realidade das periferias, os grupos que controlam territórios não diferenciam quem é das gangues de quem não é. Os moradores da Nazaré dizem que já receberam a informação de que não serão bem-vindos pelos grupos estabelecidos.
Processo de remoção suspenso
O processo de remoção das famílias, que havia começado no dia 21 de junho, pela concessionária alemã Fraport e pelo Demhab, foi suspenso no último 15 de julho. Por determinação da justiça, a segunda etapa da remoção está impedida até que se apresente o cadastro completo das famílias. A decisão é uma resposta à ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal, pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, pela Defensoria Pública da União e pela Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul.
As entidades apontam na ação que, até o momento, a empresa Itazi, contratada pela concessionária, fez o cadastramento de apenas 932 famílias, quando estima-se que cerca de 2 mil vivam na região. Em um antigo cadastro realizado pelo Demhab, consta que 1,3 mil famílias moravam na área no ano de 2010. Ainda segundo a decisão judicial, qualquer impossibilidade de cumprimento da determinação deverá ser justificada e comprovada pela Fraport. A primeira etapa não sofreu alterações.
No texto, a juíza Thais Helena Della Giustina determina que a Fraport “apresente solução habitacional que abranja a totalidade das famílias da vila Nazaré, a qual deve ser adequada aos moradores, garantindo-se a manutenção de seus meios de geração de renda, conforme o exposto, respeitando a adequação e identificação territorial e cultural da comunidade, bem como seu direito a escolha, garantindo a isonomia de tratamento, inclusive com relação às opções disponíveis”.
Até agora, 80 famílias já foram realocadas para o condomínio Senhor do Bom Fim. A segunda etapa está prevista para ocorrer até o fim do ano, e trata de outras 1.222 famílias, dentre as quais 286 devem ir também para o Sarandi e outras 936 para o condomínio Irmãos Maristas. A lista completa dos moradores cadastrados deverá ser apresentada em audiência marcada para 8 de agosto.
Os moradores chegaram a apresentar uma terceira opção de reassentamento, disse Alex, em uma área pública que fica próxima à vila. De acordo com ele, esse espaço comportaria a vila Nazaré inteira, mantendo a comunidade unida e dispensando a realocação das famílias para lugares distantes.
Edição: Marcelo Ferreira
Mais notícias de: Brasil de Fato