Terra Firme: amor, humildade e identidade
[Victor Furtado / O Liberal] O bairro da Terra Firme não tem pontos turísticos. Mas isso não impede que os mais de 64 mil moradores — registrados no censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — se identifiquem com o bairro, por tudo o que representa e tem. Não há uma história de fundação com personagens famosos e projetos grandiosos do intendente Antônio Lemos. Por outro lado, há muitos personagens que fizeram a história do bairro, num processo de ocupação popular em meio à precariedade. As pessoas definem a Terra Firme. E se o bairro se chama assim hoje, é porque a comunidade quis desse jeito, enfrentando nome “Montese”, que por muito tempo se insistiu em dar.
Inicialmente, de firme aquela terra tinha pouco. Era uma área alagada pelo igarapé do Tucunduba e seus vários braços, que deram origem a canais. Não havia como ocupar aquele território se não com construções no formato de palafitas. Algumas existem até hoje. Essa ocupação começou em meados da década de 1940. Em 1996, o nome Montese foi dado ao território em caráter oficial. Era uma memória à Batalha de Montese, ao final da Segunda Guerra Mundial (1945), na campanha da Itália.
Só que desde sempre, devido à situação precária do bairro alagado, os próprios moradores usavam do bom humor como uma forma de protesto. E chamavam a área onde moravam de “Terra Firme”. Esse deboche afrontoso contra as mazelas do bairro é histórico. Em 2016, a estudante de Direito Larissa Martins, cansada dos alagamentos na rua Dois de Junho, que estragaram roupas, sapatos e veículos da família, fez uma foto com maiô, óculos e touca, pronta para mergulhar e se locomover pelas águas. A foto viralizou rapidamente nas redes sociais digitais e muita gente se identificou. É uma realidade do bairro.
No início, as próprias pessoas é que colocavam aterros improvisados para tentar deixar a terra firme de fato, porque era um terreno difícil de se construir. A prática de aterrar permaneceu, numa tentativa de vencer as enchentes e tapar buracos que se abrem constantemente. Quando o nome Montese foi imposto, com pouquíssima participação popular, a massa de moradores defendeu o nome que reconheciam. Foi uma longa resistência. Por algum tempo, qualquer forma de referência ao bairro era “Montese ou Terra Firme”. Eventualmente, a população desistiu de Montese.
O Tucunduba, que está também intimamente ligado ao processo de formação do bairro do Guamá, foi a forma principal de sustento de muitas pessoas. Ainda existe comércio que depende dos barcos que passam por ali. Foi no entorno do igarapé que a Terra Firme começou a se formar. E por isso os mercados e feiras são fundamentais para a economia do bairro. Há comércios populares por todos os lados. O empreendedorismo é uma marca dos habitantes da área.
Como era uma área afastada dos centros onde a elite de Belém se concentrava, assim como ocorreu nos processos de formação do Guamá, Jurunas, Condor, Canudos e Cremação, os moradores da Terra Firme precisavam suportar o abandono. Políticas públicas sempre chegaram com muito atraso por lá. Até hoje. Saneamento, saúde, urbanismo, segurança, habitação… tudo sempre foi muito lento para se aplicar no bairro. Sem isso, o desenvolvimento da área foi pautado em desigualdades sociais. É uma das raízes da violência que estigmatizam o bairro.
Por isso, o valor comercial da terra segue como um dos mais baixos de Belém. Ou sem valor. Só pessoas pobres se deslocavam para lá pelas péssimas condições de vida, que garantiam imóveis a preços irrisórios ou terras simplesmente disponíveis à ocupação. Quando migrantes chegavam pelos portos ao longo do rio Guamá ou por São Brás, tinham os bairros do Guamá e da Terra Firme como os mais próximos para encontrar moradia. O processo de regularização fundiária do bairro é um dos mais atrasados da capital. Tanto que é um dos bairros com o menor processo de verticalização. Quase não há prédios. Muitos dos moradores originais viveram o auge e o declínio da economia da borracha.
A última grande ação de titulação foi durante o governo de Ana Júlia Carepa. As demais titulações foram em ações isoladas. Os conjuntos habitacionais populares até hoje não foram entregues oficialmente. Mesmo após uma década de obras. Isso inclui o residencial Liberdade, que já foi ocupado pela demora excessiva de entrega.
Outro conjunto habitacional nunca construído está atrelado a outro símbolo do bairro: o Curtume Santo Antônio, uma fábrica de couro que deu emprego a muitas pessoas da Terra Firme e Canudos. Após a desativação, o terreno que fica na confluência da Celso Malcher com a rua da Olaria (onde existiu uma olaria de fato, dos padres mercedários) passou anos abandonado. Se tornou um ponto de despejo de lixo até que o Governo do Estado desapropriou, em 2007, para a construção do residencial Vitória Régia. O projeto nunca saiu do papel.
Para conter o avanço do lixão, a área do curtume foi cercada por tapumes. Mas o lixo segue sendo depositado lá. Seu Cícero da Silva Filho, de 60 anos, nascido e criado na Terra Firme, resolveu agir: começou a formar uma pequena praça toda feita em produtos recicláveis e iniciou uma horta. Todo ano, faz uma placa comemorativa ao aniversário de Belém e pede mais cuidado com a cidade e com o bairro. Pede para não jogarem lixo na rua. Mas é uma batalha árdua mudar costumes da população.
“Gosto muito do bairro. Em 60 anos, vimos muitas coisas boas e ruins ocorrerem. Hoje em dia o bairro segue perigoso, mas melhorou um pouco. Acho que o que simboliza o bairro é a feira, a igreja e a praça. E as pessoas, que me ajudam a preservar e fazer esse trabalho de limpeza do curtume. Eu plantei uma castanhola há 10 anos. Todo dia 15 de novembro a gente bate o parabéns pra ela. Tem que ser assim. Preservar e cuidar”, diz Cícero, mostrando a árvore e a pequena praça improvisada onde ele e os amigos se reúnem após os jogos de futebol.
Tudo que se tem relativo a cultura e lazer é promovido pelos próprios moradores. Parte significativa da história e da memória do bairro é mantida pela população, como pelo grupo Ponto de Memória Terra Firme e o coletivo Tela Firme, que leva o bairro à internet. As rádios comunitárias fornecem música e informações localizadas. Coletivos culturais fazem eventos diversos de música e folclore em todos os pouco espaços disponíveis. As escolas, muitas vezes, se tornam espaços multiplicadores de cultura popular do bairro, com programações que agregam as comunidades.
O bairro da Terra Firme não tem pontos turísticos. Mas isso não impede que os mais de 64 mil moradores — registrados no censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — se identifiquem com o bairro, por tudo o que representa e tem. Não há uma história de fundação com personagens famosos e projetos grandiosos do intendente Antônio Lemos. Por outro lado, há muitos personagens que fizeram a história do bairro, num processo de ocupação popular em meio à precariedade. As pessoas definem a Terra Firme. E se o bairro se chama assim hoje, é porque a comunidade quis desse jeito, enfrentando nome “Montese”, que por muito tempo se insistiu em dar.
Inicialmente, de firme aquela terra tinha pouco. Era uma área alagada pelo igarapé do Tucunduba e seus vários braços, que deram origem a canais. Não havia como ocupar aquele território se não com construções no formato de palafitas. Algumas existem até hoje. Essa ocupação começou em meados da década de 1940. Em 1996, o nome Montese foi dado ao território em caráter oficial. Era uma memória à Batalha de Montese, ao final da Segunda Guerra Mundial (1945), na campanha da Itália.
Só que desde sempre, devido à situação precária do bairro alagado, os próprios moradores usavam do bom humor como uma forma de protesto. E chamavam a área onde moravam de “Terra Firme”. Esse deboche afrontoso contra as mazelas do bairro é histórico. Em 2016, a estudante de Direito Larissa Martins, cansada dos alagamentos na rua Dois de Junho, que estragaram roupas, sapatos e veículos da família, fez uma foto com maiô, óculos e touca, pronta para mergulhar e se locomover pelas águas. A foto viralizou rapidamente nas redes sociais digitais e muita gente se identificou. É uma realidade do bairro.
No início, as próprias pessoas é que colocavam aterros improvisados para tentar deixar a terra firme de fato, porque era um terreno difícil de se construir. A prática de aterrar permaneceu, numa tentativa de vencer as enchentes e tapar buracos que se abrem constantemente. Quando o nome Montese foi imposto, com pouquíssima participação popular, a massa de moradores defendeu o nome que reconheciam. Foi uma longa resistência. Por algum tempo, qualquer forma de referência ao bairro era “Montese ou Terra Firme”. Eventualmente, a população desistiu de Montese.
O Tucunduba, que está também intimamente ligado ao processo de formação do bairro do Guamá, foi a forma principal de sustento de muitas pessoas. Ainda existe comércio que depende dos barcos que passam por ali. Foi no entorno do igarapé que a Terra Firme começou a se formar. E por isso os mercados e feiras são fundamentais para a economia do bairro. Há comércios populares por todos os lados. O empreendedorismo é uma marca dos habitantes da área.
Como era uma área afastada dos centros onde a elite de Belém se concentrava, assim como ocorreu nos processos de formação do Guamá, Jurunas, Condor, Canudos e Cremação, os moradores da Terra Firme precisavam suportar o abandono. Políticas públicas sempre chegaram com muito atraso por lá. Até hoje. Saneamento, saúde, urbanismo, segurança, habitação… tudo sempre foi muito lento para se aplicar no bairro. Sem isso, o desenvolvimento da área foi pautado em desigualdades sociais. É uma das raízes da violência que estigmatizam o bairro.
Por isso, o valor comercial da terra segue como um dos mais baixos de Belém. Ou sem valor. Só pessoas pobres se deslocavam para lá pelas péssimas condições de vida, que garantiam imóveis a preços irrisórios ou terras simplesmente disponíveis à ocupação. Quando migrantes chegavam pelos portos ao longo do rio Guamá ou por São Brás, tinham os bairros do Guamá e da Terra Firme como os mais próximos para encontrar moradia. O processo de regularização fundiária do bairro é um dos mais atrasados da capital. Tanto que é um dos bairros com o menor processo de verticalização. Quase não há prédios. Muitos dos moradores originais viveram o auge e o declínio da economia da borracha.
A última grande ação de titulação foi durante o governo de Ana Júlia Carepa. As demais titulações foram em ações isoladas. Os conjuntos habitacionais populares até hoje não foram entregues oficialmente. Mesmo após uma década de obras. Isso inclui o residencial Liberdade, que já foi ocupado pela demora excessiva de entrega.
Outro conjunto habitacional nunca construído está atrelado a outro símbolo do bairro: o Curtume Santo Antônio, uma fábrica de couro que deu emprego a muitas pessoas da Terra Firme e Canudos. Após a desativação, o terreno que fica na confluência da Celso Malcher com a rua da Olaria (onde existiu uma olaria de fato, dos padres mercedários) passou anos abandonado. Se tornou um ponto de despejo de lixo até que o Governo do Estado desapropriou, em 2007, para a construção do residencial Vitória Régia. O projeto nunca saiu do papel.
Para conter o avanço do lixão, a área do curtume foi cercada por tapumes. Mas o lixo segue sendo depositado lá. Seu Cícero da Silva Filho, de 60 anos, nascido e criado na Terra Firme, resolveu agir: começou a formar uma pequena praça toda feita em produtos recicláveis e iniciou uma horta. Todo ano, faz uma placa comemorativa ao aniversário de Belém e pede mais cuidado com a cidade e com o bairro. Pede para não jogarem lixo na rua. Mas é uma batalha árdua mudar costumes da população.
“Gosto muito do bairro. Em 60 anos, vimos muitas coisas boas e ruins ocorrerem. Hoje em dia o bairro segue perigoso, mas melhorou um pouco. Acho que o que simboliza o bairro é a feira, a igreja e a praça. E as pessoas, que me ajudam a preservar e fazer esse trabalho de limpeza do curtume. Eu plantei uma castanhola há 10 anos. Todo dia 15 de novembro a gente bate o parabéns pra ela. Tem que ser assim. Preservar e cuidar”, diz Cícero, mostrando a árvore e a pequena praça improvisada onde ele e os amigos se reúnem após os jogos de futebol.
Tudo que se tem relativo a cultura e lazer é promovido pelos próprios moradores. Parte significativa da história e da memória do bairro é mantida pela população, como pelo grupo Ponto de Memória Terra Firme e o coletivo Tela Firme, que leva o bairro à internet. As rádios comunitárias fornecem música e informações localizadas. Coletivos culturais fazem eventos diversos de música e folclore em todos os pouco espaços disponíveis. As escolas, muitas vezes, se tornam espaços multiplicadores de cultura popular do bairro, com programações que agregam as comunidades.
Nas escolas, o senso de pertencimento à comunidade e papel social do bairro é ensinado. E assim como seu Cícero, estudantes e professores tentam dar um jeito de se desvencilhar de preconceitos e vencer o abandono. Na escola Brigadeiro Fontenelle, como conta a estudante Letícia Caroline, foi iniciado o projeto Escola Limpa, um programa de valorização da escola e de reforço educacional. Alguns espaços se encontram em melhores condições graças aos alunos e professores, que se unem para desenvolver também outras atividades de agregação da comunidade escolar.
A única área de convivência é a praça Olavo Bilac, em homenagem ao poeta carioca e pelo civismo que defendia. A população, tal qual o “Príncipe dos Poetas” e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, defende o bairro e a história do povo.
No entanto, a praça é uma área pequena e totalmente cercada por uma grade, pois é parte do terreno da igreja São Domingos de Gusmão, um marco do bairro. Quase tudo que identifica o bairro está no entorno da igreja: a feira da Celso Malcher, o “Shop Chão” – um comércio que existe no chão da praça e entorno da igreja -, a própria praça e algumas escolas. Por sinal, pouco se lembra que o santo padroeiro da Terra Firme tem uma identidade com a pobreza. Era próximo de São Francisco de Assis. Ambos são protetores dos pobres e pessoas em situação de rua.
Em meio a dificuldades históricas, a população da Terra Firme tenta sobreviver e se destacar, enfrentando o racismo e preconceitos com a violência do bairro. O medo que se criou a respeito da violência da Terra Firme fez com que o processo de exclusão aumentasse. Há motoristas de aplicativos e taxistas que não se atrevem a pegar ou deixar passageiros no bairro em determinados horários.
Uma das principais vias do bairro da Terra Firme é a avenida Perimetral, cujo nome original é Perimetral da Ciência, por ser a via de acesso da escola de aplicação da UFPA (o NPI), do CNPQ, da UFRA e da própria UFPA. Um paradoxo que ilustra também o bairro do Guamá: num cenário de atrasos e exclusão, estão algumas das principais instituições geradoras de conhecimento e ciência de Belém. E as gerações atuais miram essas instituições com o objetivo de um dia transformarem a realidade do bairro.