São Pedro dos Crentes (parte 3): futebol é tabu na Assembleia de Deus

[O blog publica a terceira reportagem sobre São Pedro dos Crentes, cidade encravada no sul do Maranhão, com aproximadamente 5 mil habitantes, fundada por fiéis da Assembleia de Deus nos idos de 1940. Nessa matéria abordo as relações entre os evangélicos e as práticas desportivas. Você pode ver os textos anteriores aqui e aqui]

[Por Ed Wilson Araújo] As poucas opções de entretenimento na pequena São Pedro dos Crentes criam ambiente propício para a frequência às igrejas como principal fonte de sociabilidade entre os moradores.

Práticas desportivas, por exemplo, são assuntos delicados de tratar com os jovens. Nem precisa instigar muito para saber que entre o bônus e o ônus de ser assembleiano algo é frustrante – jogar futebol. Em síntese, os rapazes sentem-se meio intimidados porque a doutrina tem algumas restrições à arte da bola.

Repudiar o futebol não é consenso na Assembleia de Deus, mas na provinciana São Pedro dos Crentes este esporte é tratado como tabu. Alguns líderes religiosos proíbem a prática do esporte mais popular do Brasil; outros, interpõem restrições bíblicas aos fiéis. Nesta forma de ver o mundo, o futebol abriria caminho para os descaminhos como o consumo de álcool e outras práticas consideradas profanas.

O pastor Manoel Lima (vídeo abaixo), principal liderança religiosa de São Pedro dos Crentes e presidente da Comadesma (Convenção dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleias de Deus no Maranhão), argumenta que o berço do futebol é o paganismo. “Baseado nas origens do futebol, que nasce como uma festa comemorativa a um deus pagão, por conta disso, o paganismo, que é uma grande idolatria e se torna um pecado diante das informações bíblicas, a Assembleia de Deus informa os crentes para se afastarem disso por conta que o pecado ofende a santidade Deus”, sintetizou Lima.

O deus (do futebol) Pagão

No futebol, de fato, havia um deus para as torcidas do Santos e do São Paulo, clubes onde o centroavante goleador Paulo César de Araújo, o “Pagão”, fez sucesso com jogadas fantásticas nos anos 1950 e 60.

Pagão, o “bailarino clássico” do Santos, é inspiração para Chico Buarque

Pagão deixa o legado da camisa 9 e assinatura na súmula para o peladeiro Chico Buarque

Pagão era tão reverenciado que virou ídolo do cantor Chico Buarque, a ponto de o menestrel só jogar no Politheama com a camisa 9, em homenagem ao craque santista. Para o radialista Walter Dias o estilo de Pagão era de um “bailarino clássico”, tão habilidoso a ponto de ser comparado ao rei Pelé. Apenas no Santos Pagão jogou 345 partidas e marcou 157 gols. Buarque também presta homenagem ao seu ídolo assinando na súmula das peladas do Politheama o nome do jogador elegante que encantou multidões.

Segundo o professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pastor da Igreja Evangélica Congregacional, Lyndon de Araújo Santos, não existe qualquer fundamentação na História e nem nos textos bíblicos sobre a relação direta entre futebol e paganismo.

“O futebol moderno tem origem na Inglaterra, no contexto operário pós-segunda revolução industrial, nos fins do século XIX. Trata-se de uma prática esportiva secularizada, não necessariamente “pagã”. Se há alguma referência indireta entre futebol e religião, estaria na prática de um jogo de pelota entre os maias e astecas na América Colombiana, que seria um misto de futebol com basquete, um jogo ritual com uma bola que representava o conflito cósmico, em que os perdedores eram sacrificados. O conceito de paganismo é difuso e equivocadamente posto como sinônimo à idolatria”, explicou o pastor Lyndon Santos.

Pastor Lyndon Santos: o futebol tem origem no contexto operário da Inglaterra

As restrições da Assembleia de Deus ao futebol podem ter origem no puritanismo, conceito fundamental para a ascese protestante. Segundo Max Weber, na obra A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo , ascese é o controle rigoroso e disciplinado sobre o corpo diante das tentações e prazeres do mundo. Essa austeridade implicava no corpo disciplinado para o foco principal do capitalismo – o trabalho diário e metódico como um dever religioso e a forma ideal de cumprir a vontade de Deus. Essa concepção puritana de vocação profissional, baseada na conduta ascética, é uma espécie de estilo padrão de vida capitalista.

Desde Lutero – explica o pastor Lyndon Santos – “a profissão foi interpretada como vocação divina, qualquer profissão, no intuito de desconstruir a exclusividade do clero como vocacionado por Deus. Todos, então, são sacerdotes, o sacerdócio universal dos santos. Calvino retoma esta ideia ao dizer que essa nova concepção de trabalho serviu para o desenvolvimento do espírito do capitalismo que, historicamente, emancipou-se da ética e da religião, como um sistema secularizado”.

Nessa perspectiva, o corpo está voltado para o trabalho tanto secular como o religioso. O crente assembleiano é aquele que realiza o “trabalho” ou a “obra de Deus”. Assim, o puritanismo via na prática dos jogos esportivos e nos prazeres da diversão algo meio nocivo à conduta de vida ordeira. Weber (p. 151-152) detalha o contexto da concepção puritana e a sua repulsa ao esporte: “Na verdade, aliás, a aversão do puritanismo ao esporte não era uma questão simplesmente de princípio […]. Apenas devia servir a um fim racional: à necessária restauração da potência física. Já como simples meio de descontrair e descarregar impulsos indisciplinados, aí se tornava suspeito e, evidentemente, na medida em que fosse praticado por puro deleite ou despertasse fissura agonística, instintos brutais ou o prazer irracional de apostar, é evidente que o esporte se tornara pura e simplesmente condenável. O gozo instintivo da vida que em igual medida afasta do trabalho profissional e da devoção era […] o inimigo da ascese racional, quer se apresentasse na forma de esporte “grã-fino” ou, da parte do homem comum, como frequência a salões de baile e tabernas.”

Pichações no muro do estacionamento do principal hotel de São Pedro dos Crentes associam Deus e dinheiro. Foto: Ed Wilson Araújo

Pichações no muro do estacionamento do principal hotel de São Pedro dos Crentes associam Deus e dinheiro. Foto: Ed Wilson Araújo

De acordo com o pastor Lyndon Santos, o puritanismo foi uma corrente protestante oriunda do movimento calvinista (sécs. XVI-XVIII) que zelava pela pureza ética, moral e comportamental do fiel, como evidência da eleição e da salvação. Puritano é aquele(a) que, mesmo estando inserido no mundo rejeitava este mundo naquilo que ele tem de prazer, volúpia, tentação, luxúria etc. “Max Weber desenvolveu a ideia de um ascetismo intramundano como um elemento que fazia parte do calvinismo puritano. Esse ascetismo intramundano contrastava com o ascetismo católico medieval que era extramundano (a exemplo dos mosteiros). Neste ascetismo estava o trabalho como meio de demonstração da obediência e de santidade”, detalhou Santos.

Ao pé da letra o puritanismo era levado em conta logo nos primórdios da fundação de São Pedro dos Crentes. Nos anos 1970, por exemplo, assistir televisão era um ato de pecado. Hoje os hábitos mudaram. As Assembleias de Deus no Brasil, na década de 1990, começaram a flexibilizar os usos e costumes, como assistir televisão, uso de roupas fora dos padrões conservadores, corte de cabelo, prática esportiva e maquiagem e adereços para as mulheres. Embora sejam preponderantes os traços do conservadorismo, a cidade campeã de votos para Jair Bolsonaro na eleição presidencial está repleta de inimigos do puritanismo – os bares e botecos.

Bar tem bebedeira e jogatina no acesso à rua do comércio e de serviços em São Pedro dos Crentes. Foto: Ed Wilson Araújo

Logo na entrada principal de São Pedro dos Crentes um “templo” da bebida alcoólica e da jogatina movimenta os fins de semana até com torneio de sinuca, música em alto volume e muita gente fumando. Os bares estão distribuídos em vários ambientes da área central da cidade, mas a concentração maior é na famosa rua da Vaquejada, lugar de concentração dos botecos, onde as festas rolam até altas horas, antes e depois dos cultos nas igrejas evangélicas.

As crentes Eldeni, Andreza e Eudeli, moradoras da rua da Vaquejada.
Foto: Ed Wilson Araújo

Eldeni de Oliveira Aguiar, 20 anos, é crente desde criança e filha de evangélicos. Ela é uma das moradoras da rua da Vaquejada. “Aqui tem uns cinco bares e um clube também. É muito complicado [morar na rua dos bares], mas a gente vai levando a vida”, descontraiu.

Na quarta reportagem da série vou abordar a divisão entre as congregações e lideranças evangélicas e partidárias em São Pedro dos Crentes.

Ref: Citação da obra A ética protestante e o “espírito” do capitalismo (Companhia das Letras, 2004), com edição de Antônio Flávio Pierucci.

Imagem: Pagão com a camisa de campeão paulista 1958 retirada deste site

Imagem: Pagão e Chico Buarque retirada deste site

Imagem: Pastor Lyndon Santos retirada deste site


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2 comentários para “São Pedro dos Crentes (parte 3): futebol é tabu na Assembleia de Deus

  1. Aline

    Mintiroso , só por veio no dia de um movimento nesse bar aí mais hoje como por exemplo pode passar lá que não ver um pé de cristão ! Vai mentir em outro lugar

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  2. Ed Wilson Ferreira Araújo

    Prezada Aline, sou Ed Wilson Araújo, jornalista profissional desde 1993 e professor da UFMA, com doutorado em Comunicação pela PUCRS. Li bastante antes de ir pessoalmente a São Pedro dos Crentes, busquei informações e dados sobre a cidade, inclusive os resultados eleitorais. Chegando em São Pedro fiz várias entrevistas com pessoas comuns e a principal autoridade religiosa da cidade, o pastor Manoel Lima. As entrevistas estão todas gravadas e as principais disponíveis no meu canal no You Tube. Os próprios entrevistados usaram a expressão “desviado”. Entrevistei o pastor principal e a primeira mulher convertida. Andei pela cidade e constatei bares, pessoas bebendo e jogando. Vi também crentes muito fiéis, como dona Terezinha. Tudo que está escrito foi baseado no que vi, ouvi e gravei.

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