“Reivindicar nosso espaço e protagonismo é importante na luta pela educação indígena”

Motivada pela ancestralidade, a estudante indígena Raquel Kubeo fez seu mestrado sobre a literatura infantil indígena

Fabiana Reinholz
Brasil de Fato | Porto Alegre |
“Durante muito tempo, nossa cultura viveu somente nas falas e nas memórias do nosso povo” – Foto: Fabiana Reinholz

“Era uma vez Kubai, um ser encantado, aventureiro e curioso, que criava coisas usando a magia das palavras.” Assim começa a contação da história “Kubai, o Encantado”, feita por Raquel Rodrigues Kubeo.

Mulher, amazonense, indígena, pertencente ao povo Kubeo, Raquel defendeu recentemente sua tese de mestrado intitulada, “Kubai o encantado: literatura infantil indígena em foco”, no mestrado em Educação, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Além de contribuir para a visibilidade da literatura indígena, a mais nova mestra indígena da Universidade diz que o que a motivou foi a ancestralidade, juntamente com memória e cosmovivência dos povos Kubeo e Tukano, das quais é descendente. “Eu sou mulher indígena amazonense e pertenço ao povo Kubeo. Um povo transnacional entre fronteiras, cuja ancestralidade é anterior a essas delimitações geopolíticas. O Povo Kubeo, na região amazônica do rio Uaupés, tem sua origem no mito da Cobra-Canoa ou Canoa da transformação, que subiu o rio do Universo”, destaca.

Para a mestra, apesar da obrigatoriedade de se trabalhar sobre as culturas indígenas nas escolas, fazem-se urgentes projetos pedagógicos que desconstruam não só a data já estereotipada do calendário (19 de abril), mas, sim, durante todo o ano escolar. “Uma das soluções poderia ser contar com um indígena dentro das secretarias das escolas, ou mesmo grupos de contação de histórias. Também um incentivo maior para publicações de histórias infantis indígenas, dada sua proximidade com as questões pedagógicas”, opina, citando como exemplo Márcia Kambeba, Auritha Tabajara e Daniel Munduruku. Como dica ela cita os canais de literatura indígena Literatura Indígena Contemporânea
Daniel Munduruku.

Atualmente são oito mestres indígenas titulados no PPGEDU/UFRGS, e no final do ano passado, a universidade formou seu primeiro doutor, Bruno Ferreira, de 53 anos, da etnia Kaingang. Conforme frisa Raquel, o baixo número de mestres e doutores da universidade, durante as quatro décadas de existência do programa, evidencia as desigualdades relacionadas ao ingresso e permanência de indígenas nas pós-graduações.

Leia abaixo a entrevista:

Brasil de Fato RS – O que te motivou a tratar sobre a questão da literatura infantil indígena?

Raquel Rodrigues Kubeo – Minha principal motivação foi a ancestralidade, juntamente com memória e cosmovivência dos povos Kubeo e Tukano, dos quais sou descendente. Eu sou mulher indígena amazonense e pertenço ao povo Kubeo. Um povo transnacional entre fronteiras, cuja ancestralidade é anterior a essas delimitações geopolíticas. O povo Kubeo, na região amazônica do rio Uaupés, tem sua origem no mito da Cobra-Canoa ou Canoa da transformação, que subiu o rio do Universo.

Eu trouxe a mitologia tradicional do povo Kubeo como empréstimo meu ao grupo de pesquisa, o Multi/UFRGS, coordenado pela minha orientadora Cláudia Freitas, que me encorajou a trazer a história da minha cultura para compor a dissertação de mestrado. As histórias eram inicialmente socializadas através da tradição oral, a história do mito de Kubai (Kúwai), “personagem responsável pela criação da humanidade” (PEDROSO, 2019, p. 125), como muitos outros povos nativos brasileiros.

Para minha pesquisa do mestrado, um dos objetivos foi desenvolver uma história infantil indígena, intitulada “Kubai o encantado” e a tradução da história para as línguas indígenas Guarani e Tukano. A língua Guarani foi escolhida por ser a língua falada pelo povo Guarani Mbya, um dos povos originários do território do Rio Grande do Sul, onde desenvolvo a pesquisa. Também pelo convívio na comunidade indígena e multiétnica Urbana do Centro de Referência Afro-Indígena do Rio Grande do Sul que atende um núcleo de artesãs Guarani Mbya, vindas das aldeias de Camaquã, Cantagalo e Itapuã.

A tradução na língua Tukano foi escolhida pela proximidade com a cultura do povo Kubeo, pertencente à família linguística Tukano Oriental. Possuo ascendência destes dois povos, o Yepá Mahsã, conhecido como povo Tukano origem, e Kubeo ― esta é a minha ancestralidade. Destaco também que a língua Tukano é uma das cinco línguas oficiais do município de São Gabriel da Cachoeira.


Defesa da tese de Raquel / Reprodução

BdFRS – Como tu vês esse tema sendo tratado no ensino escolar?

Raquel – Na educação básica, é garantido o conhecimento das tradições e da história dos povos indígenas, através da Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que cria a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura dos povos indígenas nas instituições de ensino no Brasil. A partir de 2008, os livros publicados de autoria indígena possibilitaram que mais crianças tivessem acesso à literatura indígena, o que também vem sendo trabalhado pedagogicamente nas escolas.

Apesar da obrigatoriedade de se trabalhar sobre as culturas indígenas nas escolas, fazem-se urgentes projetos pedagógicos dentro das escolas, desconstruindo não só a data já estereotipada do calendário (19 de abril), mas, sim, durante todo o ano escolar. Uma das soluções poderia ser contar com um indígena dentro das secretarias das escolas, ou mesmo grupos de contação de histórias. Também um incentivo maior para publicações de histórias infantis indígenas, dada sua proximidade com as questões pedagógicas.

Alguns educadores indígenas, como Márcia Kambeba, Auritha Tabajara e Daniel Munduruku, são conhecidos no meio escolar por também serem contadores de histórias e por contribuírem na formação de professores.

BdFRS – Ainda sobre a literatura, como você avalia a literatura feita por indígenas no país, sua difusão e leitura. Como podemos democratizar mais a literatura por indígenas? Que transformação isso traz?

Raquel – Durante muito tempo, nossa cultura viveu somente nas falas e nas memórias do nosso povo, sendo considerada pelo colonizador, em uma perspectiva eurocêntrica, como uma não cultura, primitiva, subalterna, inferior. Deriva daí a imposição da língua portuguesa pela catequização de nossos povos: a resistência das línguas indígenas, infelizmente, não foi possível para todos os povos remanescentes.

A literatura indígena é feita por pessoas indígenas, autores de diferentes etnias do Brasil, que publicam livros de literatura infantil, assim como desenvolvem importantes pesquisas sobre a teoria da Literatura Indígena.

Há participação efetiva do movimento indígena quanto à produção das histórias das culturas indígenas quando reivindica o espaço da autoria, ocorrendo uma reviravolta quanto à discrepância de como os personagens eram anteriormente apresentados na Literatura Indigenista, presente nos cânones da Literatura Brasileira.

BdFRS – No final do ano passado a UFRGS formou seu primeiro doutor indígena. Atualmente, quantos indígenas são mestres na UFRGS? Qual a importância de haver mais indígenas mestres e doutores? Dificuldades neste caminho acadêmico?

Raquel – O PPGEDU/UFRGS, que objetiva formar profissionais qualificados para o exercício das atividades de Ensino, Pesquisa e Desenvolvimento da produção de conhecimento no campo da Educação, até o momento: titulou 1.668 mestres e 809 doutores. (Fonte: UFRGS)

Atualmente são oito mestres indígenas titulados no PPGEDU/UFRGS. Durante as quatro décadas de existência do programa, fica em evidência as desigualdades relacionadas ao ingresso e permanência de indígenas nas pós-graduações. A diferença com Cuba, por ter sofrido o processo de ditadura, mas que, ao contrário do Brasil, possui firme incentivo e políticas públicas para a educação e pesquisa.

Sobre a política das ações afirmativas que a universidade tem acesso, 10 anos existência com a inclusão de indígenas, apresenta contradições como ditar os critérios para ingresso no Ensino Superior com exigência de Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI), que é um documento que deixou de ser emitido.

A universidade tem que cumprir seu papel institucional, respeitando a autonomia e autoafirmação dos povos originários em qualquer contexto e de acolhida de estudantes, pós-graduandos indígenas vindos de outros estados brasileiros, visto que os deslocamentos são fenômenos globais.

BdFRS – Como tu analisa o acesso do povo indígena à educação, avanços, retrocessos?

Raquel – Para os indígenas frequentarem as universidades, foi necessário acontecer uma construção em termos de reivindicação de direitos. O movimento dos povos indígenas lutou na constituinte e junto à Organização das Nações Unidas (ONU) por direitos ― como a autodeterminação ―, pois desde o período imperial, passando pelos horrores cometidos pela ditadura no Brasil, e nesta época pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão de controle do governo brasileiro, os indígenas têm suas vidas violadas, caracterizando genocídio e etnocídio.

Para mim que nunca morei na aldeia é uma conquista, a pesquisa e a experiência na universidade, por uma estudante indígena amazônida em outro estado brasileiro. Em Manaus, no bairro Mauazinho, são mantidas, em sua maioria, escolas não indígenas, e foi em uma delas que eu estudei.

Sou Raquel, mulher, amazonense. Sou indígena e pertenço ao povo Kubeo. Um povo transnacional entre fronteiras, cuja ancestralidade é anterior a essas delimitações geopolíticas. O Povo Kubeo, na região amazônica do rio Uaupés, tem sua origem no mito da Cobra-Canoa ou Canoa da transformação, que subiu o rio do Universo.


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