Povos indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo se unem no combate à pandemia
Em parceria com organizações sociais e universidades, indígenas consolidam dados regionais sobre contaminação e pressionam poder público
Com pouca testagem e controle ineficaz da disseminação do vírus, a subnotificação de casos de Covid-19 é uma realidade no Brasil. Entre os povos indígenas, a situação é agravada pelo abandono deliberado do governo federal. Determinada a romper o anonimato imposto pela negligência, a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) tem se dedicado a coletar e divulgar casos de contaminação e mortes em dez estados.
A antropóloga Cristiane Julião ressalta que consolidar dados regionais ajuda a compreender a situação de uma forma mais ampla, direcionando a busca por soluções. “Desde o início, vimos que seria nós por nós. Por isso, a gente buscou entender o contexto para além de cada povo, sempre pensando em mitigar o impacto da pandemia na região, cobrando do poder público e indo atrás de parcerias”, salienta Cristiane, que é indígena Pankararu e integra a Apoinme.
“No início foi mais difícil, pois tivemos que entender as falhas dos levantamentos feitos pelos governos e criar nossos métodos de organizar as informações”
O levantamento é realizado por lideranças indígenas, direto dos territórios, em parceria com organizações e universidades da região – que se debruçam sobre diferentes fontes de dados oficiais. O comunicador social indígena Alexandre Pankararu explica que o fluxo de informações tem sido eficiente. “No início foi mais difícil, pois tivemos que entender as falhas dos levantamentos feitos pelos governos e criar nossos métodos de organizar as informações. Para se ter uma ideia, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não leva em conta os indígenas em contexto urbano”, pontua.
Informes cotidianos
De acordo com Alexandre, atualmente os dados são atualizados praticamente todas as semanas. O informe mais recente, divulgado no dia 24 de julho na página da Apoinme no facebook, mostra um total de 1.515 casos de contaminação e 35 óbitos desde o início da pandemia entre indígenas de Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Além disso, o grupo está organizando um boletim mensal, com análises mais aprofundadas do cenário de contaminação. A primeira edição deste trabalho pode ser acessada aqui.
Ceiça Pitaguary é coordenadora da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince), que mapeia os casos entre indígenas em todo o estado e tem direcionado energia às medidas preventivas. “Esse vírus veio mostrar que o cuidado que eu tenho comigo é importante para salvar outra vidas. Portanto, escolhemos ficar na aldeia. É difícil não circular e conversar com os parentes, mas estamos tentando. Nosso trabalho de conscientização fez com que desacelerasse o número de óbitos”.
“O avanço da pandemia entre indígenas está relacionado à usurpação histórica de terras e direitos”
Negligência deliberada
A antropóloga Lara Erendira de Andrade destaca a importância destas notificações realizadas pela sociedade civil. “Diferente de outros tempos sombrios do nosso país, em que vidas indígenas foram ceifadas pelo Estado sem serem contabilizadas, hoje nós temos uma rápida apuração realizada com protagonismo das organizações indígenas. E não estamos falando apenas de números, mas de povos, de identidade e história”, sustenta Lara, que atua na Rede de Monitoramento de Direitos Indígenas em Pernambuco (Remdipe).
Na avaliação de Lara, compreender as raízes da expropriação das terras indígenas é fundamental para estabelecer leituras sobre o avanço da covid-19 entre os povos. “É notável que nos territórios mais próximos de centros urbanos a contaminação é acelerada. As comunidades que não têm casos confirmados são as mais afastadas. Quer dizer, o avanço da pandemia está relacionado à usurpação histórica de terras e direitos”.
Ceiça também aponta o descaso do governo federal. “São muitos infectados. No início, ficamos apavorados, pois nossos territórios são abertos, sem uma fiscalização efetiva da Fundação Nacional do Índio (Funai)”. De acordo com ela, por falta de informação, muitos dos indígenas não tiveram a dimensão do vírus. “As normas sanitárias não foram seguidas num primeiro momento. Junte a isso a morosidade e ineficácia da Sesai e da Funai, que custaram a reagir e apresentar um plano de ação. Tivemos que recorrer ao Ministério Público para que a Funai fornecesse cestas básicas”.
“Para além da grilagem, da mineração e dos empreendimentos invadindo nossos territórios, está claro que esta também é uma epidemia do discurso e exercício do ódio contra nós”
Cristiane afirma que as organizações sociais estão batendo em muitas portas em busca de apoio. “Temos tentado parcerias com o poder público em todas as áreas, da saúde à segurança, para ter apoio também nas barreiras sanitárias de proteção aos territórios. Mas o quadro é difícil. Faltam equipamentos, faltam testes, falta tudo. Os profissionais de saúde também estão desprotegidos”, desabafa, reiterando que, na sua opinião, a omissão do Estado faz parte de um projeto de extermínio dos povos indígenas. “Para além da grilagem, da mineração e dos empreendimentos invadindo nossos territórios, está claro que esta também é uma epidemia do discurso e exercício do ódio contra nós”.
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