“Não há futuro para a Amazônia”, diz Lúcio Flávio Pinto
Autor de quase 30 livros sobre a região, o jornalista – que nesta segunda-feira (23) completa 70 anos de idade -, lamenta o “momento dramático” na questão ambiental
(Foto de Paulo Santos/Acervo H/2016)
Por Cristina Serra, do #Colabora
A notícia pegou muita gente de surpresa. No fim de julho, o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, maior especialista em Amazônia do Brasil, anunciou no seu blog que estava deixando o exercício diário do jornalismo por ordem médica. Lúcio, que fez 70 anos de idade nesta segunda-feira (23 de setembro), foi diagnosticado no fim do ano passado com o Mal de Parkinson. Desde janeiro, já havia reduzido as atividades. O “Jornal Pessoal”, por exemplo, deixou de ser quinzenal e, desde então, Lúcio conseguiu publicar apenas três edições do jornal alternativo mais longevo do Brasil. Ele mantém uma coluna na Amazônia Real desde 2016.
Com 32 anos de existência – sem nunca ter aceitado publicidade – o “Pessoal” nasceu do compromisso radical de Lúcio Flávio com o jornalismo. Depois de uma carreira bem-sucedida em veículos como “O Estado de S.Paulo” e em “O Liberal” (de Belém), Lúcio decidiu criar um produto para tudo aquilo que a grande imprensa não publicava “porque não sabia ou porque não queria”.
A devoção a um jornalismo sem concessões lhe rendeu enormes dissabores – 34 processos judiciais e inúmeras ameaças de morte -, mas também muitas glórias. É o único brasileiro incluído na lista dos cem jornalistas mais importantes do mundo da ONG Repórteres sem Fronteiras e recebeu vários prêmios Esso, Fenaj e Vladimir Herzog, além do Colombe d’Oro per la Pace, da Itália, por contribuir no combate às injustiças sociais.
Lúcio Flávio escreveu quase 30 livros, tendo a Amazônia como tema central. Nascido em Santarém, no oeste do Pará, à beira do rio Tapajós, ele se define como “um caboclo”, obstinado em entender a região que é sua paixão e também seu maior desafio profissional. Depois de 53 anos, porém, Lúcio diz, nesta conversa exclusiva com o #Colabora, considerar a Amazônia “uma batalha perdida”.
A conversa foi por telefone, de Belém, onde leva vida modestíssima. Não tem carro, celular nem cartão de crédito. “Meu capital me permite ir até o Ver o Peso”, resumiu, com humor, referindo-se ao mercado popular da cidade. Apesar do baque que a doença lhe causou, Lúcio, que também é sociólogo e professor, ainda tem “grandes projetos”. Quer terminar de digitalizar seu banco de dados sobre a Amazônia para criar o que chama de “Enciclopédia da Amazônia Contemporânea” e escrever um livro sobre a Cabanagem, revolta popular ocorrida no Pará, em meados do século XIX. Leia a seguir entrevista do jornalista ao site #Colabora.
#Colabora – O que vai acontecer com a Amazônia?
Lúcio Flávio Pinto – Na década de 1970, o [Robert] Goodland, meu amigo, e o Howard Irwin escreveram o livro “Do inferno verde ao deserto vermelho”, no qual previam que a Amazônia viraria um deserto. Não é verdade. Eles pegaram um exemplo no sul do Pará, numa área em Santana do Araguaia, que é de areia. Ali até pode virar deserto. Mas o desmatamento continua e vai se intensificar se o projeto anunciado pelo Bolsonaro, de asfaltar a BR-319 (Manaus-Porto Velho) se efetivar. O Amazonas já tem municípios entre os mais desmatados da Amazônia. Está se repetindo no vale do rio Madeira e vai se repetir no Purus o mesmo que aconteceu no Tocantins, no Araguaia, no Xingu e no Tapajós. Então, não há futuro.
#Colabora – Mas não há o que fazer?
LFP – Depois de 53 anos na linha de frente, tentando entender a Amazônia, só tenho uma esperança hoje: o kibutz científico. Um estudante quer fazer engenharia florestal, passa por um exame de seleção e vai para uma área que está sendo desmatada. Lá, vai ter campus para ele estudar teoricamente e desenvolver um projeto. Ele recebe um lote da União em comodato, entra na graduação e vai até o doutorado. Só vai receber a propriedade plena se o projeto for executado e der certo. O governo financia tudo – mateiro, máquinas, sementes e dá uma bolsa de R$ 10 mil ao estudante. Ele vai morar lá e receberá supervisão técnica de especialistas em florestas e fazer relatórios sobre o conhecimento acumulado dos seus vizinhos nativos, índios e caboclos. Ele só vai receber o título de doutor e o título da terra se o projeto der certo. Só assim, a ciência e o conhecimento humano em relação dialética com o conhecimento histórico de milhares de anos podem pôr os cientistas na linha de frente. Não mais o posseiro, o madeireiro, o fazendeiro, o minerador. É a minha última utopia. Sugeri a técnicos do BNDES, porque é preciso acabar com o monopólio científico de quem não conhece a Amazônia. A concentração da verba de ciência e tecnologia é maior em São Paulo do que a concentração do PIB. É preciso quebrar este centralismo que é nocivo para a Amazônia.
#Colabora – Bolsonaro tem falado muito na liberação de áreas na Amazônia para garimpo, inclusive áreas indígenas. Pode ser um golpe de morte para a floresta?
LFP – Não é de morte, mas é sangrento, uma ferida feia, terrível. Toda vez que pego imagens de satélite do Tapajós, do Crepori, é uma dor lancinante para mim, que nasci na Amazônia, na beira do rio, que tem a relação que tenho com a água. Mas o pior foi a Embrapa ter inventado a semente de soja em área úmida. Antes, não dava certo plantar soja em área de floresta. Hoje, dá. Foi a invenção da pólvora contra a floresta, uma bomba. Um tio meu tinha uma fazenda em Fordlândia e passei algumas férias lá quando criança. Hoje, tem áreas imensas de soja onde era floresta. É uma dor. É um absurdo derrubar floresta para plantar soja, boa parte dela para alimentar gado.
#Colabora – O governo Bolsonaro é uma ameaça muito maior para o meio ambiente e a Amazônia do que outros governos?
LFP – O cidadão que é uma ameaça a ele mesmo, porque é o pior inimigo dele, é uma ameaça a todos os demais. Fica comprando brigas que poderia ter evitado se tivesse menos incontinência verbal e fosse um pouquinho mais civilizado. Esse cara é um perigo. Hoje, as pessoas morrem de calor na Europa. Não se pode ignorar o aquecimento global e dizer que é coisa de comunistas e de ONGs. A Amazônia vai voltar à agenda. Ou o Bolsonaro muda, por mais que ele seja um huno, um Átila, ou não vai em frente. Se dependesse dele, destruiria tudo. É um momento dramático. Mas, como sempre, a conjuntura internacional torna a situação nacional dependente, caudatária.
“A democracia não chegou na Amazônia. É a região brasileira tardia, a última que se incorporou ao país, e vista de fora para dentro“