Justiça suspende anulação da Terra Indígena Dourados-Amambaipegua I, no MS
Atendendo a pedido dos indígenas, TRF-3 suspendeu sentença que anulava parte da demarcação da terra Guarani e Kaiowá onde ocorreu massacre de Caarapó
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) suspendeu a sentença que anulava parte da demarcaçao da Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipegua I, do povo Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Foi nesta terra indígena que, em junho de 2016, um brutal ataque de fazendeiros e pistoleiros resultou na morte do agente de saúde indígena Clodiodi Aquileu de Souza, de 26 anos.
A decisão do TRF-3 decorre de uma apelação feita pelos próprios indígenas, cuja legitimidade para o pedido foi reconhecida pelo desembargador Valdeci dos Santos. Ele afirma que a discussão sobre a demarcação de terras “tem influência na esfera jurídica dos povos indígenas”.
Parte da demarcação da TI Dourados-Amambaipegua I, localizada nos municípios de Caarapó, Amambai e Laguna Carapã, estava anulada desde 2017. Em fevereiro daquele ano, a Justiça Federal de Dourados acatou um pedido liminar do dono da fazenda Santo Antônio, sobreposta à terra indígena, e declarou nula a parte da demarcação onde fica a propriedade.
A liminar, baseada na tese do marco temporal, foi confirmada pela Justiça Federal de Dourados numa sentença de dezembro de 2018 – agora suspensa pelo TRF-3, em decisão publicada no dia 1º de julho.
“Era só em relação a essa fazenda que o procedimento demarcatório estava anulado. O problema é que era um precedente para que os outros fazendeiros também entrassem com ações”, explica Anderson Souza Santos, assessor jurídico do Cimi Regional Mato Grosso do Sul e advogado da comunidade indígena no processo.
“Enquanto esse governo estiver aí, ele não vai demarcar a terra para nós. Mas nós vamos continuar a pressão”
Acesso à justiça
Desde 2017, quando a primeira liminar em favor da fazenda Santo Antônio foi deferida, os Guarani e Kaiowá da TI Dourados-Amambaipeguá I tentavam reverter a decisão. Não foram reconhecidos como parte legítima, entretanto, pela Justiça Federal de Dourados.
“Foi somente agora que a comunidade foi admitida como parte pelo desembargador”, explica Anderson. Três anos depois da primeira tentativa, a admissão dos indígenas resultou na suspensão da sentença que lesava seus direitos territoriais.
“Para nós, foi fundamental essa decisão”, avalia Otoniel Ricardo, liderança da Aty Guasu, a grande assembleia do povo Guarani e Kaiowá. “Por um lado, ganhamos, e ficamos muito felizes, mas por outro lado acreditamos que o governo hoje é anti-indígena, quer acabar com nosso território, quer acabar com nosso povo. Enquanto esse governo estiver aí, ele não vai demarcar a terra para nós. Mas nós vamos continuar a pressão”.
Repercussão geral
Uma das justificativas do desembargador para acatar o pedido Guarani e Kaiowá foi a recente decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu todas as ações e recursos de reintegração de posse e anulação de terras indígenas.
Estabelecida em maio deste ano, a decisão de Fachin atendeu a um pedido do povo Xokleng e de várias organizações que atuam como amicus curiae no processo de repercussão geral sobre a demarcação das terras indígenas. A determinação vigora até que a repercussão geral seja julgada pelo STF ou até o fim da pandemia de covid-19, caso ela perdure mais do que isso.
“O TRF-3 suspendeu a anulação com base nesta decisão do STF, que paralisa os processos até o julgamento da tese do marco temporal, e também em função da exaltação dos ânimos na região, caso uma decisão desfavorável contra os indígenas se mantenha”, explica Anderson.
“Enquanto nosso povo vai pra lá e pra cá, se matando para sustentar a família, nosso território está ocupado pelo agronegócio”
Luta pela demarcação
A publicação do relatório circunstanciado de identificação e delimitação (RCID) da TI Dourados-Amambaipeguá I ocorreu em abril de 2016, depois de décadas de luta dos indígenas, e quase dez anos depois do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado pela Funai com o Ministério Público Federal (MPF).
O acordo estabeleceu, em 2007, um prazo de dois anos para que a Funai concluísse os estudos de demarcação de diversas terras indígenas Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul, reunidos em sete grandes áreas – algumas das quais posteriormente desmembradas pela Funai.
Segundo Otoniel, os 56,6 mil hectares da TI Dourados-Amambaipegua I abrangem 79 tekoha do povo Guarani e Kaiowá. A demarcação também inclui a reserva de Caarapó, denominada pelos indígenas de Tey’i Kue.
A reserva é uma das pequenas áreas onde os Guarani e Kaiowá foram confinados durante o processo de esbulho e expansão da fronteira agrícola que ocorreu no século passado. Sem espaço para produzir alimentos, muitos indígenas precisam trabalhar para o agronegócio, em frigoríficos ou no corte de cana.
“Se o território estivesse demarcado, não ia precisar trabalhar fora. Aqui na Tey’i Kue tem 600 e poucos trabalhadores que precisam sair para buscar o seu sustento. Enquanto nosso povo vai pra lá e pra cá, se matando para sustentar a família, nosso território está ocupado pelo agronegócio”, critica o Guarani Kaiowá.
Treze anos depois do TAC, a Funai acumula uma multa milionária e, à exceção da TI Dourados-Amambaipegua I, apenas outros dois relatórios de áreas incluídas no acordo foram publicados – um deles desmembrado.
Massacre de Caarapó
Foi no contexto da luta pela demarcação de Dourados-Amambaipeguá I que, no dia 16 de junho de 2016, ocorreu o ataque que ficou conhecido como o “massacre de Caarapó”.
Com dezenas de fazendeiros e pistoleiros portando armas de diversos calibres, a ação paramilitar resultou na morte de Clodiodi Aquileu de Souza e deixou outros seis indígenas feridos. Cinco deles chegaram a ficar em estado grave, com tiros no coração, cabeça, estômago e braço.
O massacre ocorreu depois que os indígenas, pressionados pela forte mobilização dos fazendeiros contra a demarcação, decidiram retomar a Fazenda Yvu, localizada dentro dos limites do território identificado pela Funai.
Ainda em 2016, o MPF denunciou cinco fazendeiros por formação de milícia armada, homicídio qualificado e lesão corporal, entre outros crimes ligados ao ataque. Presos preventivamente e soltos no ano seguinte, eles aguardam o julgamento em liberdade.
“A decisão do TRF-3 traz alento para a memória dos que morreram na luta, como Clodiodi, ou simplesmente por estar em seu território, como Denilson Barbosa, jovem de 15 anos morto com um tiro na cabeça em 2013”, avalia Matias Benno Rempel, missionário do Cimi Regional Mato Grosso do Sul.
“É uma justiça mínima dentro de um processo que ainda precisa ser concretizado, para que essa terra não acabe como várias outras: delimitada, reconhecida pelo Estado, mas sem o usufruto dos indígenas”, pondera.
“Essa pandemia é mais uma que vem de fora. A empresa que trouxe de novo para nós, e hoje o tekoha não está preparado para receber esse tipo de doença”
Pandemia
A decisão também trouxe um pouco mais de alívio em meio à pandemia de covid-19, que chegou aos Guarani e Kaiowá por meio dos frigoríficos e do trabalho para o agronegócio.
Segundo Otoniel, três pessoas já foram contaminadas pelo coronavírus na aldeia Tey’i Kue. A apuração da Repórter Brasil indica que os dois primeiros casos da reserva ocorreram entre indígenas trabalhadores da cana-de-açúcar. A situação evidencia mais uma das consequências da demora na efetivação dos direitos territoriais indígenas.
“Essa pandemia é mais uma que vem de fora, não é nosso. A empresa que trouxe de novo para nós, e hoje o tekoha não está preparado para receber esse tipo de doença”, critica.
Ele explica que os Guarani e Kaiowá estabeleceram barreiras sanitárias para controlar o acesso à terra indígena, mas enfrentam falta de apoio e de assistência do governo federal, especialmente nas retomadas. Essas dificuldades fazem com que eles busquem reforçar suas medidas de autoproteção.
“A Aty Guasu decidiu fortalecer as barreiras para controlar a chegada das pessoas que vêm de fora. Na aldeia Tey’i Kue, já não estamos permitindo, e criamos aqui um comitê indígena de combate à covid-19”, relata. “Já morreram 62 mil pessoas, imagina os indígenas? Para ele [Bolsonaro], a gente não é nada”.
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