Jovens quilombolas levam história, arte e cultura para os muros de escola pública em Itapecuru-Mirim

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Escola quilombola Elvira Pires amanheceu hoje com as cores vibrantes das nações africanas que a caracterizam. Foto: Divulgação

Um grupo de cerca de 30 jovens quilombolas do Território Santa Rosa dos Pretos, em Itapecuru-Mirim (MA), está prestes a realizar uma semana de ação artístico-pedagógica na Unidade de Educação Básica Quilombola Elvira Pires, que fica na zona rural do município.

Durante a semana que se inicia em 21 de outubro, os jovens, que fazem parte do Coletivo Agentes Agroflorestais Quilombolas (AAQ) e também estudam na Elvira Pires, realizarão em conjunto com seus colegas uma série de pinturas nos muros externos e internos da escola, decorando as paredes brancas do edifício com temas da história de África e da cultura quilombola, como o Tambor de Crioula, o tradicional Festejo do Divino Espírito Santo, o Tambor de Mina, a capoeira, as roças, as casas de farinha, as quebradeiras de coco, as árvores frutíferas, igarapés, os animais e a espiritualidade de matriz africana.

As pinturas e atividades práticas serão precedidas por rodas de conversa e troca de saberes entre alunos e professores. Também está prevista a produção de um zine com o registro das ações.

A semana artístico-pedagógica será realizada como atividade curricular, de modo que professores e alunos, de todas as séries e períodos, possam trabalhar os temas de forma interdisciplinar por meio da arte durante o horário normal de aula ao longo das atividades.

A semana de arte também servirá para auxiliar os professores e a direção da escola no preparo das alunas e alunos para as comemorações e discussões sobre o dia 20 de novembro, dia da Consciência Negra.

O colégio quilombola Elvira Pires, originalmente, já contava com as cores das nações africanas em sua estrutura, mas após recente reforma, as cores vivas deram lugar ao branco.

O projeto de valorização da história e cultura de África e dos quilombos acontece no momento em que a gestão municipal de Itapecuru-Mirim acaba de criar a Secretaria Municipal de Igualdade Racial, em reconhecimento à força dos quilombos do município. De acordo com dados da União das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Itapecuru-Mirim (Unicquita), o município conta com quase 70 quilombos.

Orgulho para os itapecuruenses

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Foto: Divulgação

O projeto artístico-pedagógico dos jovens do coletivo AAQ foi um dos escolhidos na chamada aberta promovida pela ONG Artigo 19. A chamada, encerrada em agosto desse ano, previa bolsas de 5 e 10 mil reais para financiar intervenções artísticas que ressaltassem o direito ao protesto como uma garantia constitucional e como uma forma de denunciar e combater violações de direitos.

Segundo a Artigo 19, que defende a liberdade de expressão e de acesso à informação, a chamada aberta recebeu 248 propostas de intervenções de todo o Brasil. Apenas 6 foram contempladas, entre elas, a proposta dos jovens do AAQ, do Território Quilombola Santa Rosa dos Pretos.

“O projeto, além de valorizar nossas raízes e cultura, é uma forma de contribuir com o município e o estado na implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) e com a lei 10.639, que prevê o ensino obrigatório da história e cultura de matriz africana e indígena em todo o sistema público e privado de ensino fundamental e médio. Entendemos que a arte é uma ferramenta excelente para trabalhar esses conteúdos de forma interdisciplinar, integrando alunos e professores, apresentando novos horizontes de aprendizagem e envolvimento com a própria história”, declara Zica Pires, 25 anos, artista visual, pedagoga com licenciatura em Pedagogia da Terra pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), bolsista do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) e coordenadora pedagógica do coletivo AAQ.

Em entrevista ao site, a superintendente de Ensino e supervisora Escolar do município de Itapecuru-Mirim, Edileusa Oliveira Marques, afirmou que a conquista da chamada pública pelos jovens quilombolas do AAQ “é um orgulho”.

“Pra gente é um orgulho, temos que ter orgulho da nossa raça. Se o município de Itapecuru tem uma comunidade que se destacou, para nós, itapecuruenses, é ainda mais orgulho. E isso eu falo em nome do nosso prefeito [Miguel Lauand Fonseca] e da nossa secretária [de Educação, Teresa Lauand Fonseca]”, declarou a gestora.

LDB, currículo maranhense e educação quilombola

documento curricular

A semana de ação artístico-pedagógica proposta pelos jovens do coletivo AAQ baseia-se no cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), que prevê como princípios, em seu artigo 3o., o pluralismo de concepções pedagógicas e a consideração com a diversidade étnico-racial.

O projeto também coloca em prática outra lei federal, a 10.639/2003, atualizada pela lei 11.645/2008, que estabelece como temática obrigatória no currículo oficial da rede de ensino fundamental e médio a história e cultura afro-brasileira e indígena.

A referida lei determina que “os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.”

A semana de educação artístico-pedagógica elaborada pelos jovens do AAQ também põe em prática o que prevê o “Documento Curricular do Território Maranhense para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental.” Aprovado pelo Conselho Estadual de Educação do Maranhão (CEE-MA) em dezembro de 2018, o documento serve de base para que as escolas das redes pública e privada elaborem o Projeto Político Pedagógico (PPP) e os planos de aulas dos professores.

No documento, apresentado a jovens do AAQ pela superintendente de Ensino Edileusa Oliveira Marques durante reunião na Secretaria de Educação em 18 de outubro, a arte é considerada um componente curricular privilegiado quando se trata do diálogo com as demais disciplinas do currículo escolar, “já que a aprendizagem de uma área não se desenvolve separadamente dos saberes das outras.”

O documento também afirma que o ensino da arte em toda a educação básica é fundamental para promover o desenvolvimento pleno dos alunos. “Por meio das linguagens artísticas, o aluno adquire conhecimentos específicos que possibilitam o aprender a ver, a ouvir, a pensar, a perceber e a interagir com o mundo que o cerca.”

O projeto

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Jovens do AAQ durante oficina sobre agrofloresta no território quilombola Santa Maria dos Pinheiros, em Itapecuru-Mirim. Foto: Divulgação

De acordo com Marceliana do Livramento Pires, coordenadora pedagógica do AAQ, o projeto foi elaborado com base nas conversas diárias estabelecidas pelos jovens do coletivo sobre história, cultura, educação e ancestralidade quilombola.

“Há mais de um ano a gente vem discutindo isso, pensando formas de valorizar nossas raízes e fazer com que essa valorização seja discutida dentro da escola. A proposta de ressignificação dos muros e paredes do colégio está inserida nessa discussão, porque olhamos a escola como um espaço de aprendizagem coletiva, interdisciplinar, em que alunos e professores aprendem juntos e, principalmente, vemos como um espaço onde as alunas e alunos precisam ser ouvidos e respeitados, e não apenas receber ordens para copiar coisas no caderno”, declara Marceliana, que tem três filhos – de 7, 10 e 12 anos – estudando na Unidade de Ensino Quilombola Elvira Pires.

Com a bolsa de 10 mil reais recebida, o coletivo AAQ financiará as tintas, pincéis, transporte para compra de materiais, montagem de andaimes, alimentação e pagamento dos trabalhadores que estão preparando a base dos muros para receber as atividades artístico-pedagógicas.

“Seis pintores do território se dispuseram a preparar a pintura de base dos muros externos e internos da escola antes do início da semana de atividades com os alunos. Durante o final de semana eles já colocaram nas paredes e pilares as cores das nações africanas, que são o vermelho, o amarelo, o verde e o preto”, explicou. “As atividades de pintura com os alunos do colégio terão início tão logo a pintura de base seja finalizada”, concluiu Marceliana.

Tanto a abertura quanto o fechamento da semana artístico-pedagógica serão feitos pelas caixeiras de Santa Rosa dos Pretos. No último dia será oferecido um almoço especial para os participantes das atividades.

Além dos alunos, professores e dos jovens do coletivo AAQ, a semana artístico-pedagógica contará também com a participação de professores e estudantes do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente, da Universidade Federal do Maranhão (GEDMMA/UFMA) e de artistas do Quilombo Urbano, de São Luís.

O coletivo AAQ

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Jovens do coletivo durante atividade pedagógica com lideranças do território Santa Rosa dos Pretos e jovens de outros territórios quilombolas. Foto: Divulgação

O Coletivo Agentes Agroflorestais Quilombolas (AAQ) atua há pelo menos dois anos no Território Quilombola Santa Rosa dos Pretos. Um dos principais objetivos do grupo é garantir a proteção das matas e cursos d’água dos quilombos, garantir autonomia alimentar por meio da agrofloresta e autonomia política e educacional por meio de processos pedagógicos na escola.

Com o objetivo de contribuir na implementação da lei 10.639, há cerca de cinco meses os jovens do AAQ criaram um projeto político-pedagógico para a Unidade de Ensino Quilombola Elvira Pires, e o estão implementando semanalmente na escola, por meio de rodas de conversa, cinedebates e atividades artísticas sobre história e cultura quilombola ministradas pelos próprios jovens do coletivo aos seus colegas que estudam no colégio.

Recentemente, os jovens do coletivo realizaram, em parceria com lideranças do quilombo e com professoras e professores da UFMA – incluindo um professor-doutor de Guiné-Bissau – uma formação político-pedagógica para o corpo docente e administrativo do colégio Elvira Pires.

Por suas iniciativas, os jovens do AAQ conquistaram um prêmio internacional da empresa Lush, da Inglaterra. Zica Pires e o também quilombola Valbert Pires foram a Londres em 2018 representando o coletivo para receber o prêmio.

O coletivo organizou uma apresentação pública para a comunidade em 2018 para falar das atividades que realiza e do prêmio recebido na capital inglesa. Lideranças da comunidade, professores universitários, agentes e gestores públicos – entre eles o prefeito de Itapecuru-Mirim, Miguel Lauand Fonseca, e o secretário da Juventude, Cultura, Esportes, Lazer e Turismo, José de Sousa –, estiveram presentes no evento.

Outra conquista foi o edital “Enfrentando o racismo a partir da base”, do Fundo Brasil de Direitos Humanos. Por meio do edital, os jovens do AAQ estão, desde o início do ano, realizando atividades de formação política e cultural com jovens quilombolas dos territórios Santa Maria dos Pinheiros, em Itapecuru-Mirim, Joaquim Maria, em Miranda do Norte, e Quilombo Rampa, em Vargem Grande.

Recentemente, os jovens do AAQ, em parceria com jovens de Piquiá de Baixo, em Açailândia, iniciaram uma campanha internacional – “Água para os povos!” – envolvendo Brasil, Argentina, Colômbia e Peru. Na campanha, eles denunciam violações ao seu direito à água cometidas por empresas transnacionais de mineração e siderurgia.

A campanha foi ao ar dia 16 de outubro, por meio do site www.aguaparalospueblos.org. Na página do Brasil dentro do site é possível acessar textos, vídeos, fotos e áudios produzidos pelos jovens do AAQ a respeito de sua realidade no quilombo Santa Rosa dos Pretos.

Apesar de jovem, o coletivo já conquistou apoio e respeito de importantes aliados, como o Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente, da Universidade Federal do Maranhão (GEDMMA/UFMA), da ONG Justiça nos Trilhos, do Fundo Brasil de Direitos Humanos, da ONG Artigo 19, além do apoio de acadêmicos, educadores e estudantes do Maranhão e de outros estados.

Fonte: Justiça nos Trilhos / Resistência Quilombola Luta


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