“Está na Constituição, ter moradia digna, e nem isso o Estado faz”, diz Cláudia
Dois anos após a violenta reintegração de posse da Ocupação Lanceiros Negros, prédio desocupado segue vazio
Há um vento que cruza a esquina das ruas Andrade Neves e General Câmara, mais conhecida como Ladeira, e que sacode as venezianas e entra pelos vidros quebrados de um velho prédio abandonado. Prédio que traz em sua fachada palavras de ordem, gritos de luta e resistência pelo direito à moradia, mas que está com a entrada está proibida. A poucos metros dali, na rua dos Andradas, há um hotel abandonado, não tão deteriorado, que também segue abandonado. Na sua fachada, uma placa de vende-se. Espaços que se conectam em Porto Alegre, tendo abrigado quase 100 famílias que integraram a Ocupação Lanceiros Negros.
A trajetória de Cláudia Moraes faz parte dessa história, que o Brasil de Fato conta em sua segunda reportagem sobre o tema da moradia em Porto Alegre. Ela, assim como todas e todos os que se organizam e ocupam prédios ociosos em busca de um lar, está luta por seus direitos. “O direito a moradia é muito necessário por vários motivos. Está na Constituição, ter moradia digna, e nem isso o Estado faz. A politica pública que a gente tem não abrange a moradia”, denuncia ela, que é mulher negra, 45 anos, chefe de família, diarista, mãe de quatro filhos.
Do sonho à desocupação violenta
Mas antes de falar de Cláudia, é preciso contar a história da Ocupação Lanceiros Negros, que surge no ano de 2015, mais especificamente ao dia 14 de novembro, data em que se deu a ocupação. Assim como aconteceu com a Ocupação Baronesa, o prédio na Ladeira estava abandonado há mais de uma década. O imóvel fica a cerca de 200 metros do Palácio Piratini, sede do governo estadual, que é seu proprietário. O jornalista Luis Eduardo Gomes, do Sul 21, acompanhou e acompanha de perto a ocupação, tanto que em 2017, lançou o livro Os Lanceiros Negros, histórias de vida e de luta por moradia.
Conforme relatos dos moradores no livro, quando o prédio de cinco andares foi ocupado, havia ali estante, armários, computadores e materiais de escritório danificados. A partir da ocupação o espaço foi ganhando vida e cores. Construíram uma cozinha compartilhada, onde além das refeições, os moradores organizavam festas nos aniversários das crianças; receberam doações para fazer uma biblioteca e uma creche; criaram uma agência de empregos para ajudar a gerar renda; montavam oficinas, conta o jornalista em matéria do Sul 21. Enfim, deram uma função social ao prédio que até então estava sem função nenhuma.
Diferente do que possa passar pelo imaginário de algumas pessoas sobre como é uma ocupação, e de como é relatado por alguns veículos de comunicação, uma ocupação é um espaço organizado, com normas e regras. No caso da Lanceiros, funcionava sob o regimento do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), que proibia o consumo de bebidas alcoólicas ou qualquer droga no local, fixava o horário das 22 horas como lei do silêncio, mediava conflitos entre famílias ou briga de casais, assim como não aceitava a violência doméstica, considerada falta grave, passível de exclusão.
Essa história em construção mudou de forma truculenta, no dia 14 de junho de 2017, véspera de feriado de Corpus Christi, quando, por determinação do governo estadual – na época o governador José Ivo Sartori (PMDB), foi cumprida a reintegração de posse, com a alegação de que o prédio seria utilizado por algum órgão estatal. No livro, consta o relato: “os porto-alegrenses assistiram a cenas de violência, assistiram a cenas de violência que chocaram até os empedernidos. Crianças sendo despejadas em uma noite gelada por uma tropa de choque da Brigada Militar. A mando do governo do Estado”.
Natanielle Almada, que também morava na ocupação, relata, no livro, que ela estava no quarto da Cláudia, com os filhos dela e a sua filha, quando começou o tumulto. Gritaria e bomba. “Fiquei muito nervosa. Pensei: ‘meu deus do céu’. A gente fechou todas as janelas com tapumes. É muito horrível tu estar lá dentro e não enxergar nada e ouvir aquelas pessoas gritando, barulho de bomba, não saber o que está acontecendo”.
Na época, a reintegração foi determinada pela 7ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, que mesmo após o horário de expediente permitiu o cumprimento da decisão, justificando se tratar de um prédio público no centro da cidade, local de grande circulação. “Dada a excepcionalidade da medida, que envolve imóvel situado no centro da Capital, onde há muito movimento durante a semana, autorizo o cumprimento da ordem aos feriados, finais de semana e fora do expediente, se necessário, evitando o máximo possível o transtorno ao trânsito de veículos e funcionamento habitual da cidade”, aponta a decisão.
Após essa ação, que ficou marcada na memória da cidade pelo excessivo uso da força pela Brigada Militar, foi criado um novo protocolo de ação pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública para que, entre outras medidas, nenhuma remoção pudesse ocorrer durante a noite em Porto Alegre. Considerado um avanço, não gerou mudança significativa quando se trata das remoções na cidade – vide caso da Ocupação Baronesa.
Passados mais de dois anos, o prédio segue trancado e abandonado, servindo de moradia para ratos, largado à crescente deterioração. Em nota encaminhada à reportagem do Sul 21, a posição do atual governo, de Eduardo Leite (PSDB), é que o imóvel ainda está sob os cuidados da Empresa Gaúcha de Rodovias (EGR), que deverá devolvê-lo formalmente para o Patrimônio do Estado, hoje sob administração da Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag). “Quando houver a formalização final da devolução do imóvel, a Seplag, através da Subsecretaria de Patrimônio do Estado e como responsável pela gestão do imobiliário público estadual, avaliará o melhor aproveitando, como tem feito em relação aos demais ativos”, aponta a nota.
Após a reintegração, mais de 70 famílias ocuparam, no dia 5 de julho de 2017, um hotel abandonado na Rua dos Andradas, e novamente foram removidas, cerca de 40 dias depois. O hotel também permanece abandonado, com uma placa de vende-se. Na ocasião, a Prefeitura de Porto Alegre se comprometeu a conseguir aluguel social para 24 famílias.
Nana Sanches, integrante do MLB e antiga coordenadora das ocupações Lanceiros Negros, disse na reportagem do Sul 21 que apenas seis pessoas conseguiram o aluguel social, mas, mesmo para elas, o auxílio já terminou. De acordo com Nana, atualmente, a maioria das famílias voltou a morar em condições precárias, em ocupações ou em áreas dominadas pelo tráfico, situação da qual muita gente fugiu ao ir morar na Lanceiros. “O acordo que foi feito na saída do hotel, de procurar uma solução de moradia, nunca foi cumprido”, disse.
Em busca de moradia digna
Filha da senhora Eloí, e irmã de um grande número de mulheres na família, Cláudia conta que antes de conhecer a Lanceiros, morava em uma ocupação no bairro Rubem Berta, de onde havia saído também após uma reintegração de posse. Ao perder sua casa, através de vizinhos, conheceu Movimento Olga Benário e o MLB, que a apresentaram a Lanceiros. “Comecei a frequentar, a vir nas reuniões e comecei a fazer parte da militância. Daí eu decidi morar na Lanceiros, fiquei morando uns seis, sete meses, até que houve a reintegração”.
Cláudia explica que lá tudo era coletivo e bem organizado. No dia da reintegração, lembra que foi tudo muito intenso. “A princípio, pensamos que não haveria a desocupação. Uma parte do pessoal que era da coordenação estava na assembleia quando aconteceu. E nós estávamos no prédio e, quando nos demos conta, o prédio estava tomado pela Brigada Militar, e ai começou toda a desocupação”. Era uma noite fria, e a ação, de acordo com ela, foi truculenta. Na ocasião, segundo ela, os moradores se dividiram em dois grupos: uma parte ficou dentro do prédio com os moradores, outra parte ficou na rua. “Eu fui uma das que ficou na rua, foi muito tenso, desgastante, violento, jogaram nossos pertences na rua”, desabafa.
O MLB chegou a elaborar um projeto de transformação do imóvel em casa de passagem para as famílias, como já acontecia na Lanceiros. Agora, dois anos depois, ao comentar sobre o abandono e descaso em relação ao imóvel, que segue fechado, Cláudia ressalta ser essa mais uma violência do poder público. “Principalmente para com nós, em que a grande maioria era de mulheres chefes de família, com seus filhos. Nós que tivemos que sair de um local que considerávamos como um lar por conta da violência do Estado”.
Cláudia conta que a maioria das famílias da ocupação se dispersaram, “foram para casa de parentes, foram embora de Porto Alegre”, e que ela mantém contato com poucas pessoas que integravam a Lanceiros. Atualmente, ela vive em outra ocupação junto com seus filhos, e lamenta: “hoje, o lugar está servindo de moradia para os bichos, que agora residem ali. São ratos e tudo mais, sendo que poderia estar abrigando não só nós da Lanceiros, mas outras famílias que, devido ao desemprego, estão sem casa e sem abrigo”.
Invasão x ocupação
Para Cláudia, quando se reproduz o discurso de que as pessoas estão invadindo ao fazerem uma ocupação, há uma leitura muito errada. “Invasão é quando a gente invade um local que é de propriedade de alguém. Ocupar é quando a gente ocupa um espaço que é nosso por direito, um espaço público como era o da Lanceiros, porque a gente paga imposto todos os dias. Então, nenhum prédio público do Estado ou do município é deles. É nosso, é do povo, de mulheres, de mães de família. Então a gente ocupa esse espaço por direito”, afirma.
Ela reforça, através da própria experiência, que as famílias que estão nas ocupações, na luta por moradia, são honestas, trabalhadoras e que merecem ter uma vida digna. “São famílias que trabalham, mas que não tem condição de pagar aluguel, e que não querem depender de parentes, como é o meu caso. Essa luta é nossa, temos a obrigação de lutar pelos nossos filhos, temos a obrigação de não ficar sentada esperando as coisas acontecerem”, assegura.
“Vejo como se eles quisessem que o povo não ocupasse os lugares centrais, sendo também que eles fazem desocupação nos bairros”, reflete, lembrando de sua história de despejos. “Então o que eles querem, que a gente more onde? A gente pode morar onde quiser. Quem constrói essa cidade, independente de ser centro ou bairro, somos nós, a grande maioria é mulher. Tudo que acontece, que faz a cidade gerar renda, gira porque a gente está aqui, a mão de obra é nossa”, frisa.
Sobre os imóveis vazios, ela acredita que a prefeitura poderia fazer um projeto de moradia popular, cobrando uma taxa, com as famílias necessitadas, que não têm emprego, inclusive com quem mora na rua hoje. “Seria bem justo, mas eles preferem vender para que a gente não tenha moradia digna, para que a gente não ocupe os espaços, principalmente aqui no centro. Infelizmente a gente sabe que não vai parar, temos mesmo é que continuar com a luta”, ressalta.
Quanto ao auxílio-moradia, diz não ter recebido e desconhece quem o tenha. “Quando a gente saiu do hotel, eles ofereceram auxílio, só que ninguém recebeu. Onde está esse dinheiro? As coisas não funcionam, o que eles falam é totalmente diferente na prática”, afirma.
Formação e resistência contra os retrocessos
A experiência de organização fez Cláudia entender que fazer ocupação é também aprender, é ter a oportunidade de uma formação política que, de outra forma, jamais teria. “Quando a gente tem informação, a gente tem tudo. É a única coisa que eles não podem tirar da gente. Temos a teoria de que um povo que sabe da sua história, que tem estudo, que tem formação, pode chegar a todo lugar”. Para ela, hoje vive-se “um momento de retrocesso total, onde os movimentos sociais já não tem mais direito de ir para rua fazer luta. Nesse momento, o fato de sermos mulher, e ainda por cima mulher negra, nos faz sofrer muito mais essa violência do Estado. Vejo como uma forma de nos calar, de nos oprimir. Principalmente a população indígena, que está sofrendo bastante com esses retrocessos, com a retirada de seus direitos”, pontua.
Ao final de entrevista, foi convidada a visitar o prédio da Lanceiros. No caminho, passando pelo hotel que ora lhe abrigou na rua da Praia, ela aponta o fato de ainda estar vago e a venda. Chegando na rua da Ladeira, o vento balançava as janelas abertas de um imóvel vazio. Cláudia apontou para o segundo andar, para uma janela ainda com vidros que, mesmo atrás da poeira, ainda exibe a cortina do espaço que um dia foi a sua “casa”. Na forma abrupta do dia da reintegração, a cortina acabou ficando e serve como testemunha de que, por ali passaram e habitaram, a comunidade Lanceiros Negros.
RELACIONADAS
“A Ocupação Baronesa resiste e a chama não vai se apagar”, diz Alice
Deputados e moradores denunciam ‘atrocidades’ sobre repressão na Lanceiros Negros
Artigo | Moradia é direito. E lutar não éEdição: Marcelo Ferreira
Mais notícias de: Brasil de Fato