“Ele entrou no ônibus. Como apareceu morto?”, questiona mãe de detento em Altamira
Brasil de Fato conversou com a família de um dos 62 detentos assassinados durante a última semana no Pará
Há uma semana, o país era informado sobre a maior chacina registrada dentro de uma casa penal desde o massacre do Carandiru, em outubro de 1992, quando 111 presos foram assassinados na Casa de Detenção de São Paulo.
No Centro de Recuperação Regional de Altamira (PA), a 830 km de Belém, 58 pessoas foram assassinadas, parte delas decapitadas e outra carbonizadas, na segunda-feira, 29 de julho. Na madrugada de quarta (31), outros quatro presos foram mortos asfixiados dentro de um caminhão durante a viagem de transferência para a capital paraense.
O contexto é de disputa pelo domínio da unidade entre as facções Comando Classe A (CCA) e Comando Vermelho (CV).
Para quem teve um parente, amigo ou conhecido assassinado, o sentimento é de angústia, tristeza e puro abandono. É como se não houvesse seres humanos por trás da palavra detento e das estatísticas do sistema carcerário brasileiro.
“Quero saber o que aconteceu com o meu filho”
A diarista Madalena, mãe do detento Dorival, assassinado durante o transporte para Belém, diz que não irá descansar enquanto o Estado não der explicações sobre a morte do seu filho. “Ele entrou no ônibus, como apareceu morto em Marabá?”, pergunta.
Segundo ela, a atuação das autoridades no massacre de Altamira precisa ser explicada. Até o momento, ninguém comunicou oficialmente os familiares sobre o caso.
A mãe informa ainda que a polícia na cidade costuma ser muito violenta e diz não entender por que eles não agiram para evitar o massacre.
“Por que a polícia não invadiu o presídio? Eles estão cansados de invadir casa de pai de família. Aqui a polícia dá na tua cara e você tem que engolir, ficar calado. Você tem que saber dar coisas e fingir que não sabe. Isso está errado, está muito“, denuncia.
Questionada se teme retaliação por parte da facção, Madalena diz que, na verdade, teme as autoridades e a polícia de Altamira: “A minha preocupação é com o sistema. Eles vão ter que dar uma explicação”.
“Ele gostava muito de jogar futebol”, conta Douglas*, irmão de Dorival.
A pele negra, os olhos também negros, mas por vezes vagos, mudam quando ele é questionado sobre sua relação com o irmão detido, cuja vida foi tirada durante o transporte para Belém.
Dorival integra as estatísticas do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2017, que diz que mais da metade dos presos tem idade entre 18 e 29 anos.
Dorival foi o único da sua família a entrar para o mundo do crime. A mãe separada criou ele e os outros filhos sozinha. O pai, de Marabá, no sudeste do estado do Pará, sumiu no mundo. Eram mais de três crianças. Para que não faltasse nada em casa, a mãe realizava trabalhos diversos como diarista e outros bicos. Não foi suficiente. Aos 18, Dorival roubou pela primeira vez e foi preso.
“A inserção dele no mundo do crime não começou com as facções. Primeiro, ele praticava furtos individuais. Na primeira passagem pelo presídio é que a gente percebeu que ele entrou para a facção”, afirma o irmão.
Recrutamento de jovens
O professor Aiala Couto, da Universidade do Estado do Pará (UEPA), pesquisador em segurança pública e redes ilegais de narcotráfico na Amazônia, explica que a prática de recrutamento de jovens dentro dos presídios é mais comum do que se pensa.
“Hoje, no Brasil, dos mais de 700 mil presos, 28% estão detidos pelo crime de tráfico de drogas. Quando vamos considerar as mulheres, esse número sobe para 64%. Essa diferença deixa muito em evidência que o individuo encarcerado por um pequeno delito chegando na prisão é recrutado, porque tem que fazer parte de um grupo ou de outro, senão morre”, explica o professor.
Segundo ele, o envolvimento da família torna-se praticamente inevitável. “A esposa ou familiar será o canal de comunicação que receberá ordens de dentro do presídio e transferir para fora, inclusive, assumindo alguma dívida que o marido cometeu, passando a vender drogas ou até mesmo assumindo o controle quando o marido é preso”, argumenta.
Belo Monte, violência e políticas públicas
O irmão lembra das dificuldades de Dorival para conseguir uma fonte de renda na cidade. “Ele bateu na porta das empresas daqui para conseguir um emprego. Aqui tem um estabelecimento que vende tinta, lembro bem que ele não pediu um salário, pediu uma diária, mas nem isso ele conseguiu”, conta.
A história se repete, sobretudo entre jovens da periferia. O Brasil de Fato também conversou com Renan*, um amigo de infância do preso assassinado. Ele considera que a melhor forma de evitar que um jovem cometa crimes é com investimentos em educação, em esporte e em lazer para a juventude.
Renan relembra um caso emblemático ocorrido em 2017 na cidade de Altamira, onde se criaram juntos ele e Dorival, desde os seis anos. Os vereadores votaram pela extinção das secretarias municipais de Cultura, Esporte e Lazer, entre outras.
“No auge da violência que Altamira estava, era para se ter um olhar mais voltado para a cultura, para o esporte, mas não é assim”, critica o jovem.
:: Em 2017, Altamira era a cidade com maior taxa de homicídios do país ::
A violência em Altamira não está restrita aos muros do presídio. Dados divulgados nesta segunda-feira (5) pelo Atlas da Violência de 2019 colocam a cidade de Altamira como a segunda mais violenta do Brasil, perdendo, apenas, para Maracanaú, no Ceará.
A população atual da cidade é de 111.435 mil habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa de homicídios é de 133,7 por cada 100 mil habitantes.
De acordo com Renan, a explosão de crimes violentos na região está associada à instalação da barragem de Belo Monte. “Aqui não era uma região violenta. Belo Monte trouxe esse legado de violência, aumentou a população da cidade, não só de Altamira, mas de Vitória do Xingu, do Brasil Novo e muitas pessoas vieram de outros estados, de outras localidades trabalhar na região. Com isso, aumentou a prostituição, a violência, tráfico de drogas. Não sei como algumas pessoas conseguem pensar que a culpa não é da barragem, se foi após a barragem que isso veio acontecer”, conclui.
*Para resguardar a segurança dos entrevistados, os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios.
Edição: Rodrigo Chagas
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