Crise econômica e modelo de desenvolvimento estão associados ao aumento do desmatamento na bacia do Xingu

[Instituto Humanitas Unisinos] O aumento do desmatamento na bacia hidrográfica do Xingu tem duas causas principais, a expansão da pecuária e do garimpo, e uma causa secundária, que é o avanço da plantação de soja na região, segundo monitoramento que tem sido feito pelo Instituto Socioambiental – ISA. De acordo com Juan Doblas, coordenador técnico de geoprocessamento do ISA, a expansão da pecuária tem sido responsável “pela conversão de áreas de floresta em pasto, e isso está acontecendo, sobretudo, no Pará — na parte paraense da bacia — e basicamente nos municípios de Altamira e São Félix do Xingu, que têm o maior rebanho”. A criação de gado na região integra a cadeia de produção de grandes frigoríficos, como o da JBS, mas parte do gado é criada em áreas ilegais. “A maior parte dos frigoríficos exige uma procedência do animal, que normalmente é o CAR da fazenda onde esse animal foi criado. O problema é que, muitas vezes, os bois são criados em áreas que foram desmatadas ilegalmente e que não possuem CAR, mas são vendidos com outro nome, são credenciados com um CAR legalizado, mesmo não sendo criados lá”, informa.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-LineJuan Doblas também chama atenção para o aumento do desmatamento gerado pela ampliação dos garimpos. Segundo ele, tanto a valorização do grama do ouro, que “atingiu níveis realmente altos”, quanto a “situação de crise no país” têm incentivado “que muitas pessoas sem recursos decidam ir para o garimpo. Isso ocorre principalmente no Norte do país, mas também em outras regiões, e mesmo em garimpos de áreas remotas encontramos pessoas do país inteiro que vão em busca de fortuna. Isso está acontecendo também no Sul do Pará, que tem garimpos de pequeno porte, mas que se multiplicam, com uma força de trabalho muito grande”, relata.

Doblas também conta que a expansão da soja em áreas de floresta “está acontecendo na região de Mato Grosso, na parte da Bacia do Xingu, onde existe uma fortíssima atuação no cultivo de soja devido à agilização de certos empreendimentos que prometem tornar mais rápido o escoamento de grãos em direção aos países exportadores”. Entre os empreendimentos que estão sendo realizados, ele destaca a construção da BR 163, que vai de Cuiabá a Santarém, onde fica o porto de exportação. “O asfaltamento da BR 163 provocou uma expansão do desmatamento porque ampliou o raio de ação da soja, ou seja, compensa cultivar soja em locais cada vez mais distantes porque o transporte é cada vez mais barato”, diz.

Juan Doblas | Foto: IEA/USP

Juan Doblas é graduado em engenharia geológica pela Universidad Politécnica de Madrid e mestre em geofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente é analista senior de geoprocessamento no ISA.

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Segundo o monitoramento do Instituto Socioambiental, mais de dez mil hectares foram derrubados em julho na Bacia do Xingu, entre Mato Grosso e Pará, por causa do avanço da pecuária e da degradação ambiental. Quais são as causas da expansão da pecuária e da degradação ambiental nessa região? Há incentivos para a expansão da pecuária na região?

Juan Doblas — Na verdade, a pecuária e o garimpo são as causas principais do desmatamento na bacia do Xingu. A pecuária é representada pela conversão de áreas de floresta em pasto, e isso está acontecendo, sobretudo, no Pará — na parte paraense da bacia — e basicamente nos municípios de Altamira e São Félix do Xingu, que têm o maior rebanho. São Félix do Xingu, por exemplo, é o segundo município do Brasil com maior rebanho bovino. Então, são pastos que estão destinados a alimentar os bois que depois vão integrar a cadeia de produção dos grandes frigoríficos, como o da JBS. Essas aberturas, em geral, são registradas dentro de áreas protegidas, o que é preocupante. Por exemplo, dentro da Área de Preservação Ambiental – APA do Xingu estão sendo detectadas grandes aberturas para pastos, e isso acontece porque as áreas que eram suscetíveis à abertura de pastos já foram abertas — toda a região do leste paraense, como Xinguara e Marabá, já sofreu terríveis aberturas.

 

IHU On-Line — Esse desmatamento especificamente ocorre por conta da expansão agropecuária?

Juan Doblas — Existem dois aspectos diferentes, a pecuária e a agricultura. No Pará o problema é a pecuária. No Norte do Brasil e no estado no Pará é feita uma pecuária extensiva, que requer poucos cuidados, que não concentra o gado, mas ocupa grandes espaços de terra. Por conta disso, criadores entram em áreas de floresta, derrubam as árvores, colocam os bois nessas terras e depois os vendem de forma ilícita, usando o Cadastro Ambiental Rural – CAR e o credenciamento ambiental de outras regiões.

A maior parte dos frigoríficos exige uma procedência do animal, que normalmente é o CAR da fazenda onde esse animal foi criado. O problema é que, muitas vezes, os bois são criados em áreas que foram desmatadas ilegalmente e que não possuem CAR, mas são vendidos com outro nome, são credenciados com um CAR legalizado, mesmo não sendo criados lá. Isso foi pesquisado por diversas entidades, como o Imazon, e é um grande problema, porque não se consegue acompanhar esse quadro. Os frigoríficos também não conseguem acompanhar de forma completa a cadeia de produção da carne que estão comprando.

Além disso, outro problema relacionado à agropecuária é a abertura de áreas para a soja. Isso está acontecendo na região de Mato Grosso, na parte da Bacia do Xingu, onde existe uma fortíssima atuação no cultivo de soja devido à agilização de certos empreendimentos que prometem tornar mais rápido o escoamento de grãos em direção aos países exportadores. Entre os empreendimentos estão a BR 163, que é a estrada que vai de Cuiabá a Santarém, onde fica o porto de exportação, que tem um terminal de exportação da Cargill e outro da Bunge, por onde os grãos são exportados. Portanto, o asfaltamento da BR 163 provocou uma expansão do desmatamento porque ampliou o raio de ação da soja, ou seja, compensa cultivar soja em locais cada vez mais distantes porque o transporte é cada vez mais barato. Ainda tem a questão da Ferrogrão, que é uma obra que está sendo cogitada — está em processo inicial de licenciamento. É uma ferrovia que faria um traçado similar à BR 163, mas que deixaria o transporte de soja mais barato, o que implica também nesse impacto. Assim, estamos vendo como o desmatamento cresce nas regiões em que esse tipo de desenvolvimento para a expansão da soja é executado.

Em azul, a Bacia do Xingu, área de atuação do SIRAD X. No detalhe, a grade de mapeamento usada pelos analistas
(Fonte do Mapa: ISA)

IHU On-Line — São Félix do Xingu é conhecido por ser um dos municípios que está no perímetro da Área de Preservação Ambiental – APA, que possui o segundo maior rebanho bovino do Brasil. A pecuária nessa região é uma tradição ou ela tem sido expandida também para favorecer novos frigoríficos?

Juan Doblas — Sim, se olharmos o gráfico do rebanho bovino de São Félix do Xingu, veremos uma explosão que se deu na década de 1990 e que está relacionada com o fortalecimento dos grandes frigoríficos, especificamente da JBS. Esses frigoríficos estão no eixo Marabá — Xinguara, e é engraçado porque eles alteraram muitíssimo sua capacidade de abate: eles tinham uma capacidade de produção de carnes impressionante e ela ainda cresceu. Alguns municípios da região desmataram mais de 95% da sua superfície por conta da pecuária. Com isso, o que está acontecendo? Esses bois estão chegando ao Xingu. O reservatório de floresta que querem converter em pasto para atender a esses frigoríficos é área preservada do Xingu.

Essa área é vista como ideal para os criadores de gado, porque trata-se de uma enorme área de proteção, que tem um estoque enorme de floresta e que tem uma governança extremamente baixa; é uma área de proteção que não tem plano de manejo, e o gestor está muito longe, em Belém. Portanto, há certa desatenção em relação a essa área, e o poder público está muito afastado dessa região. Com esse tipo de configuração, as grandes empresas de pecuária implantam e abrem pastos ali. Por exemplo, a Agropecuária Santa Bárbara, uma enorme agropecuária que tem dezenas de milhares de hectares e de bois, se beneficia desse abandono do poder público.

IHU On-Line — De outro lado, qual é o impacto da mineração no desmatamento?

Juan Doblas — O preço do ouro tem aumentado muito de 15 anos para cá. Além disso, com o dólar desfavorável, a grama de ouro atingiu níveis realmente altos, o que incentiva, junto com a situação de crise no país, que muitas pessoas sem recursos decidam ir para o garimpo. Isso ocorre principalmente no Norte do país, mas também em outras regiões, e mesmo em garimpos de áreas remotas encontramos pessoas do país inteiro que vão em busca de fortuna. Isso está acontecendo também no Sul do Pará, que tem garimpos de pequeno porte, mas que se multiplicam, com uma força de trabalho muito grande capaz de entrar em áreas extremamente remotas. Os materiais de trabalho podem ser transportados por via aérea; assim, a única coisa de que precisam é uma pista de pouso no meio da floresta, em uma região que já tenha sido testada, e a partir dessa pista as pessoas começam a chegar. Se a situação continuar como está, daqui a pouco teremos um desmatamento bastante grande associado ao garimpo.

Além disso, temos algo mais grave, que é a contaminação dos cursos d’água, pois a atividade de garimpo, além de remover toneladas de terra, usa cianeto para separar o ouro da rocha e exportar diretamente o ouro puro em pequenas aeronaves. Então, todo o processo de limpeza do ouro é feito no local. Ou seja, junto com a grande quantidade de terra removida que provocará o assoreamento dos cursos d’água, ocorre a contaminação desses cursos d’água por mercúrio e por cianeto, o que é gravíssimo.

Temos registrado uma mudança muito importante em relação ao garimpo: as pessoas estão começando a usar, de forma generalizada, um maquinário pesado chamado de pá carregadeira – PC, o qual multiplica a capacidade de destruição do garimpo. Uma PC é capaz de destruir uma área muito maior do que uma área destruída pelos métodos tradicionais de garimpo. Normalmente as pessoas chegavam ao garimpo com um compressor que permitia o desmonte hidráulico, isto é, se colocava um compressor, umas mangueiras e ia abrindo o barranco — dessa forma foi aberto o garimpo de Serra Pelada. Nos grandes garimpos conhecidos atualmente, vemos que eles têm uma capacidade de destruição muito maior e muito mais rápida, e isso se dá pelo uso de maquinário pesado, como a PC.

IHU On-Line — Como o desmatamento dessa região afeta os indígenas e ribeirinhos?

Juan Doblas — As comunidades indígenas que já tiveram seus territórios demarcados ou homologados estão mais tranquilas, porque não há possibilidade de grilagem e de apropriação de terras em áreas que já foram homologadas. Então, o desmatamento para apropriação de terra não existe, mas o que existe é uma pressão por recursos naturais, como madeira, por exemplo. Observamos que essa pressão aumentou nos territórios reconhecidos. Também existem ribeirinhos que vivem em territórios que nunca foram reconhecidos. Além disso, existem áreas que foram ocupadas pelos indígenas, que foram expulsos na época da colonização, e eles reivindicam essas terras, mas elas já foram ocupadas porque estão na mira da pecuária e da soja, por isso esse reconhecimento é muito dificultado.

IHU On-Line — O que é o TAC da Carne? Como o uso do TAC pode contribuir para a redução do desmatamento em áreas protegidas?

Juan Doblas — O TAC da Carne surge no Pará por uma iniciativa do Ministério Público e do governo estadual, que num certo momento detectou que a maior parte do desmatamento é associada à pecuária. Com isso, o MP decidiu realizar um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC para incrementar a governança sobre esse setor da pecuária. O TAC tem uma série de medidas, mas uma das mais importantes é a obrigação de uma guia de transporte para todo boi transportado. Essa guia de transporte, chamada de Guia de Transporte Animal – GTA, teria que ser, obrigatoriamente, vinculada a um CAR, ou seja, um imóvel rural devidamente registrado. Se esse imóvel rural tivesse desmatamento, se tivesse sido embargado, essa guia de transporte não poderia ser emitida. Essa medida contribuiria para aumentar a trafegabilidade do boi, para saber de onde ele vem.

Mas essa medida enfrentou vários problemas. O primeiro deles, como já falei, é o registro de bois em outros CARs legalizados, que não corresponderiam ao lugar onde o boi foi realmente criado. Isto é o que mais acontece: registram os bois em locais legais, mas que não correspondem ao local real onde ele foi criado. O segundo problema diz respeito à existência de uma dificuldade interna de implantação do TAC dentro do estado do Pará. A agência encarregada de aplicar essa medida é a mesma que vacina os bois, a Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará – Adepará, que tem como principal missão — o que eles fazem fantasticamente — vacinar todos os bois do Pará. O problema é que boa parte dos bois está sendo criada em pastos abertos ilegalmente, dentro de áreas de conservação, dentro de áreas que não deveriam ter sido desmatadas, e a agência vacina os bois de qualquer jeito, porque a missão deles é vacinar e ponto.

No momento em que o governo do estado pede para a agência avaliar a situação legal do pasto em que o gado está sendo criado, para ver se existe CAR ou não, há reticência, porque a agência, com razão, alega que se fizer isso o pessoal deixará de chamá-la para vacinar os bois, isto é, vai perder clientes. Além disso, se a agência não vacinar todos os bois, poderá ter um surto de febre aftosa e arruinar o setor. Então, existiu e continua existindo uma luta interna para a implantação do CAR, e há uma divergência clara, interna, dentro do estado, que tem dificultado a aplicação do TAC da Carne.

Além do mais, existe outra dificuldade: muitos frigoríficos não aderiram ao TAC da Carne e não estão rastreando o boi — metade dos frigoríficos do Pará não faz isso. Ou seja, cerca de 30% do volume de bois abatidos no Pará não é adequadamente rastreado. O último problema é que muitos desses bois são criados, nos dois primeiros anos de vida, em áreas desmatadas e depois esse bezerro é transferido para uma fazenda legal, onde é feito o chamado processo de engorda e finalmente ele é vendido para o frigorífico. Mas as primeiras etapas de cria do animal, que são os momentos em que ele precisa de mais cuidados, são feitas em pastos ilegais, em pequenas fazendas, que muitas vezes foram desmatadas ilegalmente.

Portanto, o TAC da Carne tem vários problemas de aplicação, mas há um esforço do governo do Pará e do Ministério Público para aplicá-lo. Já foram feitas auditorias e esperamos que ele realmente seja implantado, porque representaria um grande avanço para enfrentar o desmatamento.

IHU On-Line — Além do TAC da Carne, que outras medidas podem ser adotadas para assegurar a preservação dessas áreas?

Juan Doblas — Dentro das áreas não protegidas seria preciso aplicar protocolos que assegurassem a legalidade das cadeias de produção, tanto de carne quanto de grãos. Dentro das áreas protegidas é preciso terminar os ritos de demarcação e homologação de terras indígenas que ainda não têm esse status, além do monitoramento e fiscalização dessas áreas. E, em relação ao garimpo, a solução é a fiscalizaçãomesmo; infelizmente é um problema que tem que ser tratado pela polícia. Recentemente houve uma grande operação, extremamente efetiva, contra o garimpo na região de Tucumã, no leste do Xingu, a qual tratou de enormes invasões dentro das áreas indígenas, que foram denunciadas pelos próprios indígenas. Então, é preciso insistir nesse rumo.


Deixar um comentário