Crise é o pretexto para cortar verba do carnaval gaúcho
Maiara Marinho e Eduarda Schein/Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) – Ainda que o carnaval no Brasil seja conhecido mundialmente, há alguns anos vivemos o seu sucateamento ocasionado pelo poder público. Até o fechamento desta reportagem, o Brasil de Fato confirmou quase 20 cidades que não terão folia financiada pelas Prefeituras em 2019. Em Porto Alegre, o desfile de rua será realizado sob licitação. De acordo com a assessoria de comunicação da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, “a empresa Impacto Vento Norte Produções Técnicas foi a vencedora da disputa do Pregão Eletrônico 01/2019. Será a primeira vez que Porto Alegre terá um carnaval de rua organizado a partir de editais”. Diante destas circunstâncias, que atingem também as escolas de samba com corte de verbas, há mobilização a fim de manter sólidas as organizações carnavalescas.
A prefeitura da capital gaúcha alega não dispor de verbas para financiar o carnaval – razão alegada por todos os municípios que cancelaram a folia – e as entidades encontram dificuldades, inclusive, para conseguir parcerias privadas. Dessa forma, buscam alternativas de autofinanciamento. Para Simone, porta-bandeira e professora de capoeira, “no final do ano passado, as escolas associadas à União das Entidades Carnavalescas do Grupo de acesso de Porto Alegre decidiram que o desfile iria ocorrer em 2019, sendo no Porto Seco ou não”.
Sucateamento dos festejos populares
A crise econômica tem servido de justificativa para que as Prefeituras deixem de financiar ou reduzam substancialmente os recursos para o evento. E, além disso, há uma linha bastante tênue neste discurso que pode ser compreendido como uma manifestação elitista e racista. Thiago Pirajira, integrante do Bloco da Laje em Porto Alegre, comenta: “a intelectual e educadora Sueli Carneiro fala a partir do conceito de epistemicídio justamente dessa operação do racismo em silenciar, apagar os saberes, as epistemes do conhecimento produzido pela população negra no Brasil”.
É histórica a prática de sucatear áreas populares (escolas, universidades e hospitais públicos, por exemplo) para, posteriormente, privatizar. Com o carnaval não é diferente. Thiago diz que “se a gente vai pensar o carnaval enquanto uma manifestação genuína do povo que não deve ser controlada por nenhum sistema, por nenhum poder que não seja o poder comunitário, então a gente já tem um olhar crítico sobre essas realizações do carnaval subsidiado pelo Estado. Eu tenho plena convicção de que é um dever do Estado ter políticas eficientes que subsidiem o carnaval, mas eu tenho críticas de como o governo do município de Porto Alegre tem feito a sua gerência sobre as manifestações de carnaval na cidade”.
O carnaval historicamente marca um momento de festejo popular que também carrega consigo a identidade cultural de uma época e de um povo. O documentário Salto Alto retrata os significados da folia. Nele, a narrativa que persiste nas falas dos/as entrevistados/as é a da alegria, mas também demonstra como pessoas cotidianamente marginalizadas por uma estrutura desigual, sentem que sua existência é significativa. Giovanna Justo, que na época em que o documentário foi gravado era a porta bandeira da Mangueira, comenta em tom bem humorado: “sou uma secretária simplesinha e aqui sou uma estrela”. As portas que o carnaval abre podem mudar um caminho de exclusão social prometido por um Brasil tão desigual a milhares de jovens. Sendo, em muitos casos, um dos poucos espaços possíveis para aguçar a criatividade e aprender a tocar instrumentos, criar fantasias, elaborar letras e músicas que, em muitos casos, reflitam sobre a sua condição de ser no mundo, algo que a indústria cultural aliena todo dia, na tentativa de elaborar uma só cultura.
As escolas de samba tradicionalmente nascem em um bairro a partir de uma construção coletiva que possibilita trocas mais significativas entre as pessoas. Os ensaios pré-carnaval, abertos à comunidade, trazem as pessoas às ruas, a transitar nelas, a ocupá-las. Aqueles que não se aproximavam para dançar ao redor da roda de samba, estendiam suas cadeiras na frente das casas e trocavam impressões com gestos e frases curtas entoadas aos ouvidos de todos. A jornalista e youtuber do canal Fala Janna, Janaína Pereira compartilha o que considera mais importante do carnaval: “a alegria que ele carrega consigo. O carnaval é o momento onde todos param para se divertir, desopilar e aproveitar a data como acharem melhor. O que motiva tudo isso é o amor à folia, a alegria que as pessoas sentem naquele momento e o sentimento de prazer”.
Resistência
A importância sociológica do carnaval é pouco valorizada. Em 1960, o samba-enredo da Salgueiro falava sobre Zumbi dos Palmares, um importante representante da história brasileira que é pouco contada nos livros escolares. Em 1988, nos 100 anos de abolição da escravidão, a Mangueira apresentou um samba questionando “hoje dentro da realidade, onde está a liberdade, onde está que ninguém viu?”. Em 2018, a vice-campeã do carnaval carioca, Paraíso do Tuiuti falou sobre escravidão, denunciou a reforma trabalhista e ainda satirizou o ex-presidente (golpista!) Michel Temer. Em 2019, os temas continuam a inspirar a luta. Dessa vez, a Mangueira anuncia “ô, abre alas pros teus heróis de barracões” e exalta mulheres como Dandara e Marielle Franco. A Salgueiro fala de religião de matriz-africana. A escola Vai-Vai, fala do quilombo do futuro defendendo a liberdade e o fim do preconceito.
O carnaval é comovente, é instigante, é o prazer da alegria que não pede moeda de troca para ser apreciado. É a história do povo negro sendo contada ao som de tambores. Anuncia nos sorrisos, nos molejos, na entrega do corpo que flutua nas linhas que contam uma verdade que este país negro e indígena, hegemonizado por uma minoria branca, insiste em negar. O carnaval é resistência.
Este conteúdo foi originalmente publicado na versão impressa (Edição 10) do Brasil de Fato RS.
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