Carlos Pronzato, um cineasta das lutas sociais da América Latina
Diretor de mais de 70 documentários, Pronzato acredita na força do resgate da memória para renascer revoltas populares
Fabiana Reinholz e Katia Marko
Uma câmera na mão, uma ideia na cabeça e muitas fitas VHs na mochila. Assim começou a vida de cineasta do diretor argentino radicado no Brasil há mais de 30 anos, Carlos Pronzato. Além da sétima arte, ele tem outras duas paixões. Segundo ele, o Teatro e a Literatura compartilham o “amor livre” com o Cinema e mais especificamente pelo documentário.
A sua trajetória iniciou ainda na adolescência. Seu pai, Víctor Pronzato (ou Proncet), músico compositor de numerosos filmes e obras teatrais na Argentina, dramaturgo, roteirista, ator (protagonizou e roteirizou o emblemático filme político Los Traidores, de Raymundo Gleizer, em 1972) foi fundamental para lhe aproximar do cinema. A década de 1980 foi de viagens por diversos países da América Latina que terminaram no Brasil em 1989, quando aqui se instalou, hoje morando na Bahia.
Artista premiado, recebeu, entre importantes distinções, o prêmio do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, em 2008; o “Roberto Rossellini” (2008), na Itália; e em 2017, o prêmio Liberdade de Imprensa pelo jornal Tribuna da Imprensa Sindical, no Rio de Janeiro.
Questionado sobre a importância dos documentários como um espaço de memória e resistência, ele diz: “É exatamente esse o seu papel principal, trazer à tona experiências de confronto com o capital, orgânicas ou não, com maior ou menor relevo popular, mas com contundente incidência histórica nos movimentos reivindicatórios e revolucionários posteriores.”
Segundo afirma, a abordagem de um tema esquecido ou pouco divulgado, faz renascer experiências de lutas operárias, camponesas, estudantis, que impulsam os processos atuais. “Considero esse o principal elemento de resguardo e utilização da memória. Principalmente nestes tempos políticos sombrios em que há uma tentativa impulsada desde as três esferas do governo federal de destituir a História da realidade dos fatos e criar novas narrativas fantasiosas para iludir milhões de pessoas, onde as mentiras oficiais chegam até a propor que nem a ditadura militar existiu, dentre tantas outras barbaridades.”
Justamente com esse objetivo de ajudar a entender o atual momento no Brasil, onde se vive uma tempestade de ataques contra a classe trabalhadora, com cortes de direitos antes considerados invioláveis, além da convivência com trabalho escravo, é que Pronzato considera imprescindível fazer um paralelo com o que aconteceu 103 anos atrás. Para isso, lança virtualmente, nesta quinta-feira (30), a partir das 19h, o filme “1917, a Greve Geral”.
O documentário terá lançamento online no canal do YouTube de Carlos Pronzato. O diretor mergulhou nessa que foi uma das mais prolongadas e contundentes greves já realizadas no Brasil, em julho de 1917, e que sofreu brutal repressão do governo. Até hoje não se sabe exatamente quantas pessoas morreram nos confrontos, nos quais a polícia matava manifestantes nas ruas, no sabre e na bala, e promovia muito espancamento.
A obra completa de Carlos Pronzato pode ser acessada em seu site e confira a íntegra da entrevista.
Brasil de Fato RS – Nos conta como surgiu o cinema na tua vida.
Carlos Pronzato – O cinema surge por influência familiar. Meu pai, Víctor Pronzato (ou Proncet), músico compositor de numerosos filmes e obras teatrais na Argentina, dramaturgo, roteirista, ator (protagonizou e roteirizou o emblemático filme político Los Traidores, de Raymundo Gleizer, em 1972) foi fundamental para me aproximar da sétima arte, já seja acompanhando quando adolescente à sua labor nos estúdios cinematográficos e posteriormente trabalhando como ajudante de direção em alguns filmes da indústria cinematográfica porteña, antes de partir para o México em 1982 para estudar cinema no CUEC (Centro Universitário de Estudos Cinematográficos).
Acabei não fazendo o curso, iniciando uma longa viagem de vivências em diversos ofícios e aprendizados por diversos países da América Latina que terminaram no Brasil em 1989, quando aqui me instalei, concluindo o curso de Direção Teatral na UFBA em 1993, ao mesmo tempo em que retomava minha atividade no audiovisual. Em tempo: em 2002 fiz uma especialização em Teoria do Teatro Contemporâneo na UFRGS.
BdFRS – Por que sua paixão pelo documentário?
Pronzato – Bem, em primeiro lugar dizer que as minhas outras duas paixões, o Teatro (dirigi inúmeras peças e escrevi algumas também) e a Literatura (publiquei diversos livros, mormente de poesia e contos) compartilham o “amor livre” com o Cinema e mais especificamente pelo documentário. Penso que esse interesse pelo gênero documentário vem, a princípio, da afinidade que sempre tive pelo estudo da História em geral e da História oral em particular, matéria prima essencial da linha documental que exerço. E também as minhas viagens pelo continente nos anos 1980 foram o cenário apropriado para despertar o interesse pela História dos povos latino-americanos e as suas lutas políticas e sociais, um cardápio infinito de possibilidades cinematográficas para o retrato e a interpretação analítica no documentário e também na ficção, muitas vezes tão contundente e realista quando um documentário.
BdFRS – Qual foi seu primeiro filme? Como foi o processo de produção?
Pronzato – Fora os trabalhos feitos como ajudante de direção, e noutras funções, na Argentina, no México e a direção de alguns curtas experimentais no Brasil quando aqui cheguei, o primeiro trabalho próprio, de roteiro e direção com uma certa produção, foi um curta de ficção histórica iniciado em 1999, em 35 mm, e depois de muitos percalços de produção, finalizado em 2001, em vídeo: Canudos numa longa curva.
O processo de produção foi, de início, através das leis de incentivo fiscal, os editais, e no fim através de festas de arrecadação de recursos (risos) e ao apoio de alguns artistas realmente interessados na Cultura. Mas, foi graças a toda essa engrenagem kafkiana dessa burocracia estatal – o que inclui também as sempre presentes cartas marcadas -, que me fez desistir desse expediente e me levou a procurar outros caminhos mais arriscados de solicitação de apoios nas organizações do movimento social e a colaboração contínua de militantes, prática que mantenho até hoje e que me permite produzir sem muitas delongas, com os mínimos recursos para iniciar os projetos que vão se concretizando no andar do processo.
Já em 2001, produzi também o meu primeiro documentário, Maio Baiano, de 20 minutos, sobre as mobilizações soteropolitanas provocadas pelas ações inconstitucionais do ACM no Congresso Nacional, como foi, neste caso, a violação do painel eletrônico de votação do Senado.
BdFRS – Como consegue exibir os seus filmes?
Pronzato – No início, na época das fitas VHS, os filmes eram exibidos em cineclubes, escolas, universidades, sindicatos, bairros, favelas, etc. No FSM de 2003, em Porto Alegre, por exemplo, essa prática foi muito ativa. Além disto, eu mesmo viajava por terra por diversos países vizinhos com malas cheias de VHS, que vendia para bancar essas viagens de trabalho – e as produções que iam sendo feitas pelo caminho -, além dos meus livros.
Aventuras que depois ficaram mais fáceis com os DVDs, menos pesados e que ocupavam e ocupam muito menos espaço nas mochilas e sacolas, e hoje continuamos, sem aventura e nem risco algum com a exibição dos filmes em streaming e lives. Atualmente, os filmes são exibidos em alguns cinemas pelo país afora, em mostras específicas ou sessões especiais, alguma que outra TV Pública que tem a suficiente coragem de exibir certos filmes, quando não há muita burocracia.
Também são veiculados pelas TVs comunitárias e Legislativas, mas a continuidade de exibições e debates se dá nos mesmos locais físicos de sempre citados mais acima, espaços que, pela circunstância da pandemia, operam hoje só on line. Nalgumas dessas exibições sou convidado e participo, mas a maioria corre solta por aí, o que acho fantástico para divulgarem temas que precisam ser conhecidos por todos. E também no meu canal de Youtube Carlos Pronzato, recentemente inaugurado, onde postamos por agora só quatro filmes.
BdFRS – Quais os diretores de documentários que o inspiram?
Pronzato – Nem só documentaristas me inspiram, também escritores e artistas de todas as plataformas. Acredito que o campo da Cultura, sendo infinitamente mais vasto que o da Política, tem essa função de criar uma base muito mais sólida para abordar qualquer assunto do fazer no cinema social.
No campo específico do documentário, estritamente no cinema político, todos recebemos de alguma maneira influências profissionais e éticas de Raymundo Gleizer e o seu cinema dos anos 1960 e 1970. Também da famosa Escola de Cinema da Universidade del Litoral, na província de Santa Fe, na Argentina, através dos documentários – enquetes de Fernando Birri, por citar algumas referências básicas.
Hoje estou muito atento também a coletivos independentes de cinema político atuantes em diversos países. Aqui no Brasil um grupo muito interessante é o Nigéria filmes. Na outra vertente documental que eu trilho, a do cinema de processos históricos de lutas sociais, e também de personagens marcantes, posso citar o cineasta carioca e grande amigo Silvio Tendler, situado num outro extremo econômico de produção empresarial, mas com o qual compartilhamos ideias e sonhos.
BdFRS – Teus filmes retratam greves, massacres, violências, ocupações, lutas políticas e sociais. O que ainda não fez (no cinema) e que gostaria de fazer?
Pronzato – Apesar de ter realizado em muito pouco tempo mais de 70 documentários, entre longas, médias e curtas, – expliquei acima que a década de 1980 foi de viagens latino-americanas e a de 1990 do século passado dedicada quase que exclusivamente ao teatro -, há um mundo de temas históricos a serem abordados nos documentários e uma dinâmica de excessiva velocidade política conjuntural passando diariamente sob os nossos narizes. Nem sempre é possível acompanhar esse fluxo frenético. Mas, algum dia gostaria de abordar o campo ficcional, que foi onde comecei no cinema, e que continuo trilhando na Literatura, na poesia e nos contos principalmente, que são naturalmente roteiros de ficção, que podem ser desenvolvidos como filmes.
Algo que também gostaria de implementar algum dia é um cineclube, um espaço físico de debates. Visitei e visito tantos cineclubes pelo país afora, que algum dia gostaria de estar à frente de um. Admiro a capacidade dos cineclubistas, principalmente daqueles que trabalham sem incentivo fiscal algum, com algum que outro apoio, e como sei o que é isso, os admiro como colegas e difusores do nosso empenho em produzir quase artesanalmente, por vontade política própria, um cinema libertário, sem dependências de nenhum tipo.
BdFRS – No filme mais recente disponibilizado no youtube, tu tratas da guerra da água na Bolívia, uma temática que se estende por outros países da América Latina. Como foi a produção do filme e como tu vês essa questão da privatização de bens naturais no continente?
Pronzato – O documentário Bolívia, a Guerra da Água foi produzido em 2007, portanto sete anos após os históricos acontecimentos na cidade de Cochabamba que chocaram o mundo e marcaram um antes e um depois nas lutas populares pela preservação da água como um bem comum. Naquela época eu já tinha realizado o documentário Bolívia, a Guerra do Gás, em 2004, nesse sim praticamente inserido no calor da hora, tendo chegado na Bolívia pouco tempo depois do início dos protestos contra o governo de Sanchez de Lozada, que pretendia exportar os hidrocarbonetos bolivianos para os EUA, medida contra a qual a população se levantou e o expulsou do governo. E também já tinha feito o documentário Jallalla Bolívia, Evo Presidente (2005), sobre a emocionante posse do atualmente destituído presidente indígena do país vizinho.
Naquele ano de 2007 estava trabalhando nessa região do país sobre os 40 anos do assassinato do Che Guevara (em 1967). Aí decidi me debruçar sobre a questão da água, um tema sobre o qual já vinha refletindo, e iniciei os contatos na própria Cochabamba com os principais referentes dos acontecimentos do ano 2000. Foi uma autêntica revelação como a questão estava latente nos entrevistados ainda e apesar de alguns retrocessos nas reivindicações da época, o tema continuava a provocar lembranças de uma luta que até hoje é fundamental, certamente a mais fundamental de todas a ser disputada diante das empresas privadas e o neoliberalismo.
Infelizmente o tema voltou à baila devido a privatização do saneamento básico ocorrida no Congresso Nacional em Brasília recentemente. Penso que deveria haver uma articulação continental muito mais contundente em torno da defensa e acesso universal a esse bem público vital, com levantamentos populares autônomos e contínuos como aconteceu na Bolívia, a única maneira eficaz de enfrentamento, muito além de assinaturas coletivas virtuais e parcimônias político parlamentares para conter o avanço ultra neoliberal atual.
BdFRS – Que América Latina temos hoje? Como tu analisas as recentes manifestações que ressurgiram principalmente no ano passado, e as desse ano contra o fascismo e o racismo?
Pronzato – Refletem o esgotamento de um modelo da centro esquerda liberal que sucumbiu às alianças da governabilidade no âmbito da democracia possível, permitida pela burguesia e o Poder financeiro local e global. Cada país é um caso aparte, mas alguns processos políticos são reflexo de erros crassos como o do Evo Morales modificando a Constituição para se reeleger. Na Venezuela, o desaparecimento do comandante Hugo Chávez (ainda está por se descobrir a participação norte-americana na doença que o levou à morte) foi o ponto chave para o surgimento das mobilizações da direita e a esdrúxula auto nomeação presidencial do Guaidó.
O desgaste de outros governos como o de Mujica do Uruguai, que não atendeu demandas básicas da esquerda que colocou o corpo nos anos de chumbo, como o julgamento e prisão dos genocidas militares uruguaios também provocou fissuras nas fileiras da Frente Ampla. Seria muito longo enumerar o lento declínio das esquerdas latino-americanas que apesar dos muitos pontos positivos não souberam e não sabem – algumas nem querem – conciliar os programas eleitorais que ganham as massas, com um decidido enfrentamento aos 10% oligárquico de cada um dos nossos países.
Por sorte revoltas populares como a chilena de outubro passado contra o milionário empresário e presidente Piñera, trouxeram um renovado ar de verdadeira democracia que alenta novas perspectivas para sairmos definitivamente deste modelo de governo burguês ao qual estamos submetidos através da “urnas democráticas”, e sob o qual sucumbe toda esperança de transformação real da sociedade. Como dado informativo, o resultado desta última revolta citada foi registrado no documentário Piñera, a Guerra contra Chile, que me fez voltar ao Chile para realizar este já o quarto documentário nas terras de Salvador Allende, disponibilizado no nosso canal de youtube.
No que diz respeito ao racismo e ao fascismo incentivado desde o Executivo e os Ministérios é um dos pontos primordiais que diferencia o governo anterior deste atual. E isso começou antes do Bolsonaro e as suas hostes virtuais invadir o Palácio do Planalto. Como exemplo podemos citar o caso, no fim de 2018, durante as eleições, do Mestre Moa do Katendê, assassinado por um eleitor do ex deputado carioca, pelo incentivo criminal que as suas declarações provocam nos seus eleitores. A realização do documentário Mestre Moa do Katendê, a primeira vítima foi a nossa resposta a esse declínio civilizatório encarnado por este ressurgimento fascista no país.
Já para relatar e analisar o descaso com a questão indígena realizamos um documentário histórico: A Confederação dos Tamoios, a última batalha que além de trazer à memória esse episódio do século XVII acontecido no litoral brasileiro, resgata também depoimentos degradantes sobre os indígenas de Bolsonaro e Mourão, dignos do século XIX.
BdFRS – Gostaria que tu falasses do papel do cinema, em especial os documentários, como um espaço de memória e resistência.
Pronzato – É exatamente esse o seu papel principal, trazer à tona experiências de confronto com o capital, orgânicas ou não, com maior ou menor relevo popular, mas com contundente incidência histórica nos movimentos reivindicatórios e revolucionários posteriores. Às vezes, a abordagem de um tema esquecido ou pouco divulgado, faz renascer experiências de lutas operárias, camponesas, estudantis, que impulsam os processos atuais e considero esse o principal elemento de resguardo e utilização da memória. Principalmente nestes tempos políticos sombrios em que há uma tentativa impulsada desde as três esferas do governo federal de destituir a História da realidade dos fatos e criar novas narrativas fantasiosas para iludir milhões de pessoas, onde as mentiras oficiais chegam até a propor que nem a ditadura militar existiu, dentre tantas outras barbaridades.
BdFRS – Como tu tens visto a situação da sociedade brasileira no contexto atual e do setor do audiovisual, principalmente sob o governo Bolsonaro?
Pronzato – O contexto é o pior possível num cenário sanitário de proporções pandêmicas nunca visto no mundo inteiro. Mas antes de atingirmos uma das piores marcas de óbitos mundiais o Brasil já disputava o troféu do pior presidente mundial ao longo da História com a posse (ilegal, já que através de fake news) do ex capitão. Todos os avanços dos governos anteriores, desde 2003, foram sistematicamente desmontados, no intuito de um desmonte definitivo maior que é a almejada eliminação de todo vestígio da esquerda deste país – desde as mais radicais até as mais moderadas como a que governou durante 13 anos -, para servir o capital internacional sem interferências de nenhum tipo, como já assumido pelo “presidente” em reunião com Trump e veiculada na TV.
No setor audiovisual o correlato político é do mesmo teor, começando pelas temáticas que não devem ou não serão incentivadas por causa da hipócrita moral da equipe de governo até a diminuição ostensiva dos benefícios econômicos para impulsar a atividade. A perspectiva do Executivo é acabar com a Ancine e taxar os produtos brasileiros no vídeo sob demanda restringindo ainda mais o mercado local de exibição, desobrigando as distribuidoras de exibir conteúdo brasileiro. Mais um exemplo de ataque à cultura nacional e de subserviência ao capital internacional, neste caso, ao seu atual sócio norte-americano.
BdFRS – Como tem sido a pandemia para ti?
Pronzato – Todos os cuidados foram tomados para resistir à proliferação do vírus e também para se opor à pratica negacionista e criminal do desgoverno bolsonarista, desconsiderando a ciência, as indicações da OMS e atrapalhando o setor da Saúde com nomeações e expulsões dignas de um mundo de gangsteres e milícias, no qual nos debatemos até hoje.
Por outro lado, a pandemia trouxe modificações substancias nos relacionamentos humanos, antecipando cenários de ficção científica, talvez reservados para as décadas posteriores. E estas modificações comportamentais levadas ao cenário político, podem ser decisivas para afundar ainda mais qualquer tentativa de confronto real com o capital.
Edição: Katia Marko
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