As quebradeiras de coco babaçu da Amazônia e a luta em defesa das territorialidades

Por Geovania Machado Aires, Camila do Valle e Cynthia Carvalho Martins – publicado em Amazônia Latitude

“Quando chegou de 90 pra cá, foi criado o Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu, porque já era luta muito grande com conflitos da devastação das palmeiras. Primeiro, era a organização das mulheres, ainda não era o MIQCB, era só as mulheres organizadas. A gente via que existia sindicato, os movimentos, mas pra defender palmeira ninguém ligava. Aí, tava se acabando tudo, era um meio de vida que ajudava homem e mulher, e todo mundo. As mulheres resolveram entrar na luta, né, pra que barrasse a devastação das palmeiras e, dentro dessa luta, a gente conseguiu muitos assentamentos, né, e estamos lutando até hoje pra sair as reservas extrativistas, para que as terras sejam da gente, porque se a terra não for da gente, não terminam os conflitos.” Dona Nice Machado Aires. Entrevista realizada pela pesquisadora Geovania Machado Aires, maio de 2015.

Conforme o depoimento da senhora Nice Machado Aires, transcrito acima, as quebradeiras de coco babaçu iniciaram como um movimento de mulheres organizado de forma mais localizada. Mais adiante, nos anos 90, se organizaram interestadualmente no Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB). Anteriormente à criação do MIQCB, elas se reuniam em cada estado para discutir os conflitos e ameaças, buscando apoio em outras organizações sociais, tais como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), principalmente no sudoeste do Pará; a Alternativa para Pequena Agricultura no Tocantins (APA-TO), no estado do Tocantins; a Sociedade de Direitos Humanos, em São Luís (MA); o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU), em Imperatriz; a Associação em Área de Assentamento do Estado do Maranhão (ASSEMA), no Mearim e Centro de Educação Popular de Esperantina (CEPES), no Piauí. Com a criação do MIQCB, as mulheres se fortaleceram e ampliaram suas redes de relações.

Atualmente, o MIQCB reúne diferentes formas organizativas, tais como associações, clube de mães, cooperativas, fóruns e os núcleos, articulando uma rede ampla de movimentos sociais. O MIQCB criou uma forma de classificação própria das suas áreas de atuação, não coincidente com a classificação oficial e passou a designá-las como regionais. Atualmente, são seis regionais: regional do Mearim, do Tocantins, de Imperatriz, da Baixada Maranhense; do Piauí e do Pará. Mesmo com problemas comuns, como as derrubadas, envenenamentos de pindovas e impedimento na atividade de coleta do coco, cada uma das denominadas regionais apresenta especificidades em relação aos tipos de conflitos e à territorialidade. Distinguem-se, também, em função da atividade econômica, que é conciliada com o trabalho com o babaçu. Isso porque as quebradeiras são também agricultoras, pescadoras, quilombolas, indígenas, sem-terra e assentadas.

A denominada região ecológica dos babaçuais tem aumentado ao longo dos anos e esse aumento relaciona-se diretamente com a luta empreendida pelas quebradeiras em defesa dos babaçuais. As pesquisas realizadas no âmbito do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) mostram que, atualmente, a área corresponde a 27 milhões de hectares. No ano de 2005, a área somava 18 milhões. Aproximadamente 1 milhão de quebradeiras de coco trabalham com o babaçu e, dessas, pelo menos 400 mil já vêm se reunindo em torno do MIQCB. Essa força de mobilização propiciou uma visibilidade das lutas empreendidas contra as devastações; em favor de uma equidade das relações de gênero, em defesa das territorialidades, da lei de livre acesso aos babaçuais e por uma tecnologia socialmente apropriada.

A afirmação identitária articula-se com a defesa de uma economia própria, centrada na construção de mini fábricas que processam os subprodutos do babaçu. Hoje, as quebradeiras de coco produzem, para exportação, o mesocarpo, sabão, sabonete e o óleo de babaçu. Os subprodutos são vendidos, mas também utilizados no âmbito da unidade de produção familiar, como produtos de uso doméstico. O fato de gerenciarem seus próprios empreendimentos permite uma flexibilidade na produção cujo objetivo não está voltado somente para o mercado. Em períodos de maior intensidade no trabalho nos roçados, como no chamado de broque, as mini fábricas diminuem a produção e as quebradeiras de coco passam a se dedicar com maior intensidade às suas roças.

O presente ensaio fotográfico, montado pelas pesquisadoras Geovania Machado Aires, Cynthia Martins e Camila do Valle, é resultado de pesquisas desenvolvidas no âmbito do PNCSA na regional da Baixada Maranhense, especialmente no município de Penalva (MA). Todas as fotografias são de autoria da pesquisadora Geovania Machado Aires, mestre em Cartografia Social e Política da Amazônia e filha da liderança Nice Machado Aires.

As pesquisadoras realizaram trabalho de campo em distintas comunidades, sobre os saberes locais e o quotidiano das quebradeiras de coco. Realizaram discussões e debates com as famílias, principalmente em torno dos conflitos. Tais conflitos com os fazendeiros envolvem situações como a criação bubalina; apropriação ilegal de terras; saída de famílias de terras nas quais estavam secularmente estabelecidas; roubo de ruínas de Engenhos; devastações em grande escala de palmeiras; colocação de cercas elétricas para interdição das quebradeiras em adentrar as áreas de coleta e os campos naturais; e envenenamento das denominadas pindovas,as palmeiras pequenas.

O município de Penalva concentra distintos quilombos em função de ser uma região na qual predominou, no século XIX, unidades de produção de cana-de-açúcar denominadas Engenhos. A produção de açúcar dessas unidades sociais era transportada para o Engenho São Pedro, em Pindaré Mirim e, posteriormente, exportada para outros países. Nas narrativas das quebradeiras e quilombolas, a referência aos antigos engenhos é recorrente e reafirma a luta em defesa do direito ao reconhecimento das territorialidades específicas.

Cada uma dessas regionais apresenta situações conflitivas distintas: na regional do Piauí, ao norte do estado, o principal problema relaciona-se com o envenenamento das pindobas e as grandes devastações; no Tocantins, destaca-se a produção desenfreada de carvão vegetal do coco babaçu para as denominadas siderúrgicas; no Mearim, os conflitos se dão pela ação dos fazendeiros para criação de bubalinos; em Imperatriz os conflitos ocorrem em função da implantação da empresa Suzano Papel e Celulose, que remanejou as famílias. É frequente em Imperatriz a exploração de carvão do coco inteiro de babaçu, o que tem destruído as florestas. Essa exploração tem relação com a implantação das denominadas siderúrgicas nos municípios de Açailândia (MA) e Marabá (PA).

 

01 Quebradeiras de coco do quilombo Bairro Novo, Penalva, se reúnem dentro do babaçual em defesa da “palmeira mãe”. Essa forma de chamar “palmeira mãe” revela que a atividade de quebrar o coco babaçu envolve uma afetividade e relaciona-se a uma atividade praticada predominantemente por mulheres. Os homens podem quebrar o coco, principalmente no período da entressafra, entretanto, é uma prática mais rara, exceto na aldeia dos indígenas Apinajé, no Tocantins, que são os homens a executarem essa atividade. Julho de 2017.

02 Reserva de palmeiras de babaçu, única conservada e protegida, pelas quebradeiras de coco babaçu, no Oiteiro, Penalva, MA. A devastação das palmeiras tem sido uma constante, praticada, na região, por criadores de gado, pretensos proprietários de vastas porções de terras. Esses pecuaristas, que na Baixada Maranhense, criam principalmente o búfalo, impedem as quebradeiras de coco de adentrarem nas terras para coletar o coco. Julho de 2017.

03 – A quebradeira de coco Maria da Graça Serra Machado, protege o palmeiral dentro do seu quintal, única forma de sobrevivência para a família. Com o cercamento das terras pelos fazendeiros, as áreas de coleta ficaram restritas e as famílias, que sobrevivem do coco, da pesca e da agricultura, têm suas terras reduzidas. O quintal passa a ser uma opção para o plantio da denominada roça e da coleta do babaçu. Comunidade quilombola Achuí I, Município de Penalva, MA. Julho de 2017.

 

04 – Dona Lindaura Pereira trabalha todos os dias com a quebra do coco babaçu. Mulher forte, que defende a área, denuncia as chamadas derrubadas praticadas pelos fazendeiros locais. Comunidade quilombola São José, Município de Penalva, MA. Outubro de 2017

05 – Comunidade quilombola de “Bom que Dói” se depara com o grande desmatamento que vem acontecendo e atingindo as quebradeiras de coco. Penalva,MA. Março de 2017.

06 – Apesar da Lei do Babaçu Livre ter sido pensada e proposta pelas quebradeiras de coco ao poder público, e, inclusive aprovada no município de Penalva, desde 1997(Lei nº1.428/2006), no Maranhão e em várias cidades da região amazônica, os interesses econômicos divergentes criam obstáculos para que esta lei seja exercida por estas mulheres extrativistas, estabelecendo dificuldades no acesso ao babaçual de muitas formas, inclusive com cercas elétricas. Comunidade Lagoa Mirim, julho de 2017.

07 – Da palmeira do babaçu, nada se perde, tudo se aproveita e se transforma pelos conhecimentos tradicionais, transmitidos de geração em geração. Da folha, se pode fazer os telhados das casas e os cofos – como elas chamam os cestos que carregam os cocos -, além de outros objetos decorativos. Do óleo da amêndoa são feitos produtos cosméticos como sabonetes, óleos e sabão, além de servir de combustível. Esse óleo, quando utilizado de forma doméstica é chamado de azeite. A casca do coco babaçu pode ser utilizada para fazer carvão. Na “Fábrica dos Sonhos”, produzem sabonetes, a farinha do mesocarpo, shampoo, azeite e bijuterias – estas, feitas, sobretudo, com a casca. A comercialização dos produtos é importantíssima para a comunidade e não impacta o meio ambiente. Várias marcas cosméticas já compraram com elas o óleo do babaçu, realizando um comércio justo que beneficia a todos e preserva a floresta.

08 – As Encantadeiras. As músicas de trabalho cantadas na coleta e na quebra do coco pelas quebradeiras de coco babaçu são apresentadas por algumas delas em shows, e também já gravaram cd’s. Elas se autodenominam “Encantadeiras”.Nas fotos a seguir destaca-se a senhora Maria de Jesus Bringelo, conhecida como Dijé, coordenadora do MIQCB e falecida recentemente. Na primeira fotografia dona Dijé está sentada, quebrando coco; na segunda fotografia ela está segurando um machado, instrumento de quebra do coco. Juiz de Fora, Minas Gerais, 2017.

09 – Quebradeira de coco da comunidade Anil sentada próximo às denominadas “rumas de coco”, ou seja, cocos babaçu coletados e guardados no “barraco” para serem quebrados. As paredes do “barraco” são feitas de palha de babaçu. Da palha das palmeiras, as quebradeiras de coco produzem ainda: abanos, cofos, “paredes das casas e telhado, como, também, as próprias casas, chamadas “casas de palha”.

10 – Além de quebradeiras de coco, algumas mulheres tocam as “caixas do divino” nas festas de Santa Bárbara e nas festas do Divino Espírito Santo. Nessa fotografia, as caixeiras estão reunidas para tocar e discutir os problemas enfrentados na prática de quebrar coco. Os instrumentos, chamados “caixa”, são, também, fabricados por elas. O local onde elas estão reunidas se chama “Centro de ciências e saberes Quilombola Apolônio Machado” e faz parte de um projeto de criação de “museus vivos”, pelas comunidades, junto a pesquisadores, na Amazônia.

11 – Nessa fotografia a quebradeira de coco e quilombola Nice Machado Aires coordena uma reunião na comunidade Bairro Novo.

12 – As quebradeiras de coco babaçu praticam sistemas de ajuda mútua quebrando o coco babaçu umas das outras. Atualmente, as quebradeiras de coco trazem os cocos de longe, formam as denominadas “rumas de coco” e, em seguida, quebram com o auxílio de outras quebradeiras, em um sistema conhecido como troca de dias. Comunidade Retiro, outubro de 2017.

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Todas as fotos são de autoria de Geo Machado – Mestra em Cartografia Social e Política da Amazônia pela UEMA e Pedagoga pela UFMA. Pesquisadora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e do grupo de pesquisa do CNPq “Literatura e Antropologia: cartografias e outras formas narrativas”, coordenado pelas professoras dras. Camila do Valle (UFRRJ) e Cynthia Carvalho Martins (UEMA).

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XOTE DAS QUEBRADEIRAS DE COCO
Letra e música: João Filho ou João Abelha para os/as íntimos/as – Praia Norte do Tocantins – TO
Refrão : Hei não derrube estas palmeiras. Hei não devore os palmeirais.
Tu já sabes que não podes derrubar, precisamos preservar as riquezas naturais

O coco é para nós grande riqueza, é obra da natureza,
ninguém vai dizer que não.
porque da palha se faz casa pra morar,
já é um meio de ajudar a maior população.
Se faz o óleo pra temperar comida,
é um dos meios de vida pra os fracos de condição,
reconhecemos o valor que o coco tem
e a casca serve também, para fazer o carvão.
Com o óleo do coco as mulheres caprichosas
fazem comidas gostosas de uma boa estimação.
Merece tanto seu valor classificado
que com o óleo apurado se faz o melhor sabão.
Palha de coco serve pra fazer chapéu,
da madeira faz papel, ‘inda aduba o nosso chão.
Talo de coco também é aproveitado,
faz quibano e faz cercado pra poder plantar feijão.
A massa serve pra engordar o porco,
tá pouco o valor do coco, precisa dar atenção.
Para os pobres este coco é meio de vida,
pisa o coco Margarida e bota o leite no capão.
Mulher parada deixa de ser tão medrosa,
seja um pouco corajosa, segura na minha mão.
Lutemos juntos com coragem e com amor
pra o governo dá valor a esta nossa profissão.

Referência bibliográfica:
Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Guerra ecológica nos babaçuais: o processo de devastação das palmeiras, a elevação do preço de commodities e o aquecimento do mercado de terras na Amazônia / Alfredo Wagner Berno de Almeida, Joaquim Shiraishi Neto, Cynthia Carvalho Martins. – São Luís: Lithograf, 2005. 186 p.


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