Aritana Yawalapiti, grande lutador e articulador de mundos
Com a partida de Aritana, vítima da Covid-19, o Xingu está de luto. A grande liderança deixa como legado a cordialidade e a persistência em uma história de luta pelos povos do Xingu
Mais uma liderança do Xingu se vai, vítima da Covid-19. Aritana Yawalapiti faleceu na manhã de hoje (5/08), em Goiânia. Entre as memórias dos xinguanos estão presentes aquelas de um tempo em que os povos do Xingu foram assolados por diversas epidemias. Hoje, em um novo contexto, mas que remete às doenças que vitimaram os xinguanos em outras décadas, o falecimento de Aritana cria um luto prolongado entre os povos do Território Indígena do Xingu, no Mato Grosso.
O líder alto xinguano foi diagnosticado com Covid-19 no início de julho, e logo foi internado em uma UTI em Canarana (MT), cidade de referência para o atendimento. Em seguida, no dia 22, foi transferido para Goiânia. Nunca perdeu uma luta de Huka-Huka, mas a Covid-19 é um adversário de outra ordem, que a cada dia faz mais vítimas entre os povos indígenas no Brasil.
Aritana Yawalapiti nasceu em uma família de grandes lideranças. Desce criança, foi moldado para ser um chefe alto xinguano, com influência em todas as etnias do Alto Xingu. Era poliglota, falava pelo menos quatro línguas diferentes e sempre foi um grande mediador das relações de contato do mundo do branco com os xinguanos, com um estilo diplomático de ser.
Todos os povos dos Xingu reconhecem a importância de Aritana Yawalapiti como uma grande referência para o Parque Indigena do Xingu, hoje conhecido como Território Indígena do Xingu (TIX). O grande líder sempre foi zeloso pelos aspectos culturais e guardião da cultura Alto Xinguana.
Para André Villas Bôas, do ISA, “Aritana é mais um dessa geração que se vai, dessa geração que viveu as sequelas do pós-contato e de todas as mudanças que ocorreram no Brasil, sobretudo no TIX, que é hoje uma ilha de floresta, com várias ameaças externas.”
A memória de Aritana Yawalapiti atravessa o tempo e marca a vida de quem teve a oportunidade de conhecê-lo, como conta a antropóloga Carmen Junqueira, que o conheceu ainda criança, quando vivia a reclusão que o tornaria uma grande liderança xinguana.
“Conheci Aritana quando ainda era garoto e ele estava em reclusão. Foi criado para ser um chefe, e foi um chefe em um período importante do Alto Xingu, em que ocorreram vários desencontros relativos a chefes de postos e coordenadores no Alto Xingu, na década de 80.”
Carmen Junqueira acompanhou os Kamayurá durante 20 anos, que são afins dos Yawalapiti, o que possibilitou que tivesse uma relação muito próxima com Aritana. Ela conta que sempre o aconselhava a ser um grande lutador, conselho esse que ele seguiu a risca.
“Todos morriam de medo. Vinham os melhores lutadores kamayurá e kalapalo, e Aritana ficava na linha de frente e derrotava todos”, relembra Junqueira. A antropóloga complementa: “Eu perdi um filho. Um filho que eu convivi desde pequeno. Morreu um grande chefe, hoje o dia está mais cinza e a cada xinguano que se vai, sinto que estou murchando.”
A existência de Aritana Yawalapiti perpassa ainda outras memórias, como a do professor de antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Fausto, que conheceu Aritana há 30 anos , no Rio de Janeiro, quando ele e outros chefes xinguanos circulavam para conseguir recursos a fim de criar uma fundação alto xinguana.
Fausto conta que a imagem mais forte que guarda de Aritana é de 2015, da última vez que o encontrou. Naquele ano, relata, ocorria um Kuarup na aldeia Kuikuro de Ipatse de um grande cantor e chefe que havia vivido na aldeia Yawalapiti, e os Yawalapiti estavam, então, ajudando os Kuikuro na festa.
Aritana e seu povo tinham chegado com antecedência à aldeia e em um dia que precedia o Kuarup, ele se juntou a Aritana, seu irmão Pirakumã, o cacique Kuikuro Afukaká e seu irmão Tabata para tomar banho juntos na lagoa.
“Naquele dia eu me lembro muito claramente que fiquei muito tocado pelo companheirismo entre essas quatros pessoas, esses quatros chefes já com uma certa idade, que finalmente podiam compartilhar amizade, fazer brincadeiras, relembrar do passado. Era notável acompanhar aquele clima descontraído e com muita amizade que estava acontecendo lá, e eu me lembro disso com muita felicidade,” lembra.
“As lembranças que eu guardo de Aritana são as melhores possíveis. Ele era uma figura imponente, extremamente digna, com o rosto grande, anguloso, corpo de lutador e do qual saíam as palavras mais doces, mais acolhedoras, mais tranquilas, sem qualquer sombra de raiva, de afobação, como é próprio dos grandes chefes do Alto Xingu,” diz Fausto. “É com enorme tristeza que recebo a notícia da sua morte. É um mundo que se vai, é uma história que se encerra em um momento muito difícil da existência dos povos indígenas no Brasil.”
As memórias que ficam
Bruna Franchetto, professora dos programas de pós-graduação em Antropologia Social e em Linguística da UFRJ, conheceu Aritana Yawalapiti quando ainda era jovem, aos 26 anos (Aritana tinha a mesma idade), em 1977, em sua primeira ida ao Alto Xingu.
Ela conta que as lembranças mais vivas em sua memória são as da convivência com Aritana e sua família. “Eu esperava dias no posto Leonardo pela canoa dos Kuikuro que viria para me levar até a aldeia e acabava dormindo na casa de Aritana, numa antiga aldeia Yawalapiti bem próxima ao posto Leonardo. Era uma casa cheia de gente, muitas famílias todas em volta do grande chefe, toda aldeia em volta do grande chefe,” diz.
O chefe Kuikuro Afukaka estava se estabelecendo como chefe e ela se tornou sua irmã, aprendendo com ele toda história que liga com tanta força e intensidade os Kuikuro e os Yawalapiti. “Eu estou, como diz Watatakalu Yawalapiti, sobrinha do Aritana, sem chão. Estou também de luto, de alguma maneira, distante em isolamento no Rio de Janeiro, mas acompanhando tudo.”
Para Franchetto, Aritana Yawalapiti foi uma grande professor, com o qual ela aprendeu muito por meio de conversas, sobretudo à noite, em sua casa, na velha aldeia Yawalapiti. Ficam muitas lembranças fortes, saudades e a referência que Aritana foi para todos.
Para Watatakalu Yawalapiti, coordenadora do departamento de mulheres da Associação Terra Indígena Xingu (Atix), membro do Movimento Mulheres do Xingu e sobrinha de Aritana, fica a lembrança de sua luta para manter viva a cultura alto xinguana.
“Ele lutou muito, sempre resolveu os problemas do Xingu. Viu a perda de irmãos mais jovens do que ele e sofreu muito. Eu não tenho palavras para descrever a dor que estamos sentindo,” conta. “Esse era o meu tio, alguém que lutou e enfrentou muitos brancos. Também recebeu muitas autoridades na casa dele. Nos últimos dias, quando ele estava doente, vimos que ele estava demonstrando força, mesmo passando por um momento de fragilidade, para que a família não sofresse. Ele implorou pra essa doença não entrar nos Yawalapiti. Meu tio representa muita força pra gente.”
Falar de Aritana é lembrar do acolhimento, da educação e principalmente do respeito, afirma a indigenista Nina Kahn, do ISA. “Ele foi um filho que se comprometeu fielmente a respeitar as regras que o seu pai ensinou aos membros de toda família. Foi com esses princípios que o Aritana sempre recebeu todos em sua casa”.
Que a cordialidade e a persistência, principais marcas de Aritana Yawalapiti, estejam sempre presentes na memória de todos e sejam refletidas nas próximas lideranças que irão dar continuidade ao seu legado.
Até o momento o TIX tem 139 casos confirmados, 138 suspeitos e 12 óbitos de Covid-19.
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