Amazônias em tempos de incertezas

Publicado por Rogério Almeida na Revista Amazônia Latitude | 12 de março de 2019

A propriedade privada predomina sobre a posse ancestral

A cidade de Santarém, município do estado do Pará, pertencente à mesorregião Baixa Amazônia, situa-se no encontro dos rios Tapajós e Amazonas. Os dois rios escoam na direção de um mesmo curso d’água e configuram a paisagem das gigantes bacias hidrográficas homônimas cujas águas não se misturam.

Duas formas distintas de pertencer ao espaço e de usufruir o que a localidade proporciona evidenciam o contraste em que a população de Santarém está inserida. A Feira do Mercadão 2000 e o entorno dela representam o lado em que o comércio é alimentado pela produção local junto a um rico e diversificado campesinato de diferentes modalidades. São ocupações, projetos de assentamento de reforma agrária, reservas extrativistas, quilombos e áreas que fazem fronteiras com cidades urbanas. Neste cenário está presente a pesca, o artesanato e o hortifrutigranjeiro.

No outro extremo, a população do Baixo Amazonas é refém da divisão de trabalho e do estilo de vida instituído e/ou proporcionado pela multinacional Cargill, empresa que oferece serviços e produtos alimentícios, agrícolas, financeiros e industriais ao mundo. Representa outra forma de usufruir os recursos naturais, o espaço e o tempo. Ela conecta o local ao global a partir da exportação de commodities de grãos, soja especialmente.

O trabalhador informal é típico da paisagem da região. O homem ocupa o lugar do animal com o serviço braçal. Trata-se de trabalho exaustivo, de baixa remuneração, desprovido de contrato social e realizado sob um sol escaldante ou chuva.

As embarcações nativas carregam mercadorias e pessoas que viajam em redes. Rede é palavra chave dos circuitos paralelos. Enquanto o homem do trabalho braçal coopera para a circulação de mercadorias do circuito local, as esteiras mecanizadas da Cargill ativam o deslocamento dos grãos dos silos aos navios que ganham os mares, até alcançarem o velho mundo, a Ásia e o EUA. As bolsas de valores internacionais não fazem cotação dos produtos oriundos da cadeia local, mas dos provenientes da modernização.

Porto da multinacional Cargill, em Santarém-PA. Foto: Amazônia Latitude.

No século XVII, os portugueses criaram os primeiros núcleos de ocupação e penalizaram os povos indígenas com chagas, escravidão, guerras, catequese e o extermínio. Na delimitação do território, fizeram germinar fortificações, aldeamentos missionários, grandes fazendas com imigrantes. Neste vasto mundo, igarapés, igapós, furos paranás confluem na composição da civilização do povo da várzea.

A sazonalidade é um elemento estruturante no processo de vida na Amazônia. Na várzea, as cheias e vazantes dos rios condicionam as rotinas. Enquanto na terra firme recai sobre o período chuvoso o protagonismo. Tais diferenças também acentuam as distinções em relação ao modo de produção, ao acesso e uso dos recursos naturais, à definição da propriedade da terra, e, por consequência, à multiplicidade de identidades.

Registros científicos advertem que o rico solo da várzea possibilitou a extração das riquezas da floresta, entre elas: cacau, castanha, cravo, drogas do sertão, madeira, quelônios, peixes e o peixe-boi. Gado e a criação de búfalo estiveram anteriormente na área, mas hoje constituem uma ameaça aos ciclos de vida do lugar. Por séculos, constituiu-se como o principal vetor de colonização da Amazônia, numa equação marcada pela lógica: rio-várzea-floresta. Nos anos de 1960, inaugurou a racionalidade: rodovias-terra firme.

O rio que no século XIX, em tempo de cheia, materializava a melhor oportunidade de fuga do povo negro para a formação de seus mocambos, hoje é território de remanescentes que combatem agendas desenvolvimentistas que vão de encontro às suas práticas econômicas, políticas, sociais e culturais.

A modernização conservadora que aconteceu entre 1964 e 1985 relegou a várzea a um plano secundário, o que é menos prejudicial. Mas a demanda seletiva do mercado por quelônios, peixes e árvores promoveu grande impacto e a extinção de algumas espécies. Soma-se ao cenário a introdução de espécies exóticas como a Juta, introduzida por imigrantes japoneses, especialmente em Parintins, no estado do Amazonas.

O rio é a vida e às vezes a morte dessa população. Numa parte do ano ele invade ruas e causa danos materiais. Com isso, também promove migrações por conta do fenômeno das erosões fluviais e, assim, constrói novas formas de usos dos recursos, vivências e solidariedades. Noutra época do ano, recua e forma praias.

No mundo de rios da Amazônia brasileira pretende-se erguer outro mundo, o do concreto para a geração de energia. Os planos do Governo Federal já realizaram isso nos rios Tocantins, Madeira e Xingu. E impõem o mesmo desfecho para o rio Tapajós, o rio Araguaia e tantos outros. O questionamento que fica é – energia para quem? A sabedoria ancestral traduz que barrar o rio é barrar a vida, tanto pelo contexto político quanto o econômico, que colocam em xeque a sobrevivência dos povos ancestrais. No plano econômico dos dias atuais a ameaça recai sobre a recente agenda desenvolvimentista baseada em Eixos de Integração e Desenvolvimento (EID), que preconizam como estratégico a dinamização de modal de transporte, energia e comunicações.

Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, construída para barrar as águas do rio Madeira na Amazônia Legal rondoniense. Fonte: newsrondonia.com.br

A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA), que é um programa em que 12 países da América do Sul, em conjunto, visam promover a integração sul-americana com a modernização da infraestrutura de transporte, energia e telecomunicações, tem como objetivo integrar e estimular politicamente, economicamente e culturalmente a América do Sul. A circulação de mercadorias (commodities) é a grande meta – uma saída para o Pacífico para atender a demanda da China.

O estado autoritário, composto por megacorporações e agências multilaterais, ancorado a partir de meios técnicos, científicos e informacionais promove a expropriação numa escala continental. Porém, sob a inspiração de balaios e cabanos, parte da população luta pelo reconhecimento e defesa de seus territórios na busca pela amplificação da cidadania em terra de frágil democracia de um país desigual.

As jornadas são marcadas por inúmeras mediações, nas quais despontam setores da Igreja católica, partidos políticos, ONGs e intelectuais, que resultaram na criação de interessantes fóruns e redes, como, por exemplo, o Fórum Carajás, Fórum da Amazônia Oriental (FAOR), Justiça nos Trilhos, Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), Xingu Vivo e o Tapajós Vivos. Tais coletivos/redes promovem variadas formas de enfrentamento em oposição a grandes projetos.

No campo da comunicação produzem livros, manifestos, documentários e cartilhas. No entanto é a assimetria de forças que estrutura o combate entre os interesses das grandes corporações e as populações nativas. Nas arenas de lutas, os dias são marcados por combates, negociações e acomodações, numa constante e atribulada redefinição dos territórios e das territorialidades físicas e simbólicas.

Rogerio Almeida é docente do Curso de Gestão Pública no Instituto de Ciências da Sociedade na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Também é doutorando em Geografia Humana – Dinter – USP/UNIFESSPA/UFOPA/IFPA. Contato: araguaia_tocantins@hotmail.com


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