“Segurança da areia”: personagens de Jorge Amado não são ficção no Rio de Janeiro

O “Segurança da Areia” poderia bem ser um dos personagens do livro de Jorge Amado / Ilustração: Nathalia Souza

*Texto publicado no Brasil de Fato. 

Vinicius Andrade e Ana Beatriz Felizardo – Pedro Bala, Sem Perna, Gato e Pirulito são alguns dos personagens da clássica obra de Jorge Amado Capitães da Areia. Lançado há 87 anos, o romance retrata o cotidiano de um grupo de crianças e adolescentes abandonados, que vive nas ruas sobrevivendo de pequenos furtos. A obra, que procura mostrar não apenas os assaltos, mas também as aspirações e o pensamento daqueles que vivem no limite, nos serve de inspiração para contar a história real de um jovem carioca. Ele vive a 1.700 km da capital baiana (lugar que ambientou a obra literária), em uma favela do Rio de Janeiro, mas poderia bem ser um dos personagens do livro de Jorge Amado.

Em um domingo ensolarado, na areia da praia de Ipanema, o “Segurança da Areia” se encontrava sentado em uma cadeira enrolando um cigarro de maconha. Ele, diferentemente dos outros personagens de Jorge Amado, não é órfão de pai e mãe, mas foi abandonado pelo Estado na cidade maravilhosa, cantada em verso e prosa de Bossa Nova.

Há mais de um ano e meio, o “Segurança da Areia” não deslumbrava a paisagem da zona sul, tomava banho de mar, pisava na área ou fumava um baseado assim: como qualquer “play” filho de classe rica ou média. Há 15 meses, ele entrou para o tráfico de drogas em um dos morros do Rio de Janeiro. Maconha não falta, já liberdade…

Lá na quebrada, ele é a sombra de um “dono da favela”. É chamado por todos de “segurança”. Mas para conseguir sair do morro e dar esse “rolé da quebrada” foi operação difícil. Teve que pedir a liberação com antecedência, adiantar as chamadas “metas” e, claro, enfrentar o longo percurso até a orla do cartão postal. Para o “Segurança da praia”, uma simples ida à praia significa luta.

Afinal, ele vive pela responsabilidade de vigiar outro corpo que não o dele. Dorme, acorda e toma banho acompanhado do chefe. Lado a lado. Ir à praia depois de mais de um ano significa relaxar a mente e esquecer a rotina de viver pelo crime organizado na capital fluminense.

Segurança: “Pó paizão tem q da uma meta pra minha turma lá, não tem como o senhor fortalecer uma meta pra mim não?” 

Dono do Morro: “Correto, tá precisando de quanto?” 

Segurança: “Pó paizão tô precisando de R$ 200.”

Dono do Morro: “Pega 500 real com o amigo lá e faz o que tu tiver que fazer.” 

A “meta” dada foi metade colocada no bolso. O dinheiro custeou o passeio raro feito ao lado do irmão do primo. O tão sonhado rolé fora da favela teve direito a tudo: camarão fresquinho, açaí bem bolado e cervejas para acompanhar. Quando a mente consegue libertar o corpo, se gasta o pagamento como se fosse último, mas sem esquecer aquelas que rezam por ele: “Cem foi pra minha mãe, 50 pra minha avó e 50 pra minha bisa”, conta.

O “Segurança da Praia” – que vamos chamar de José como nome fictício – conta que não teve escolha. Sem incentivo na escola, com apenas 14 anos, viu-se imerso no tráfico. As únicas referências masculinas na vida do jovem seguiram também esse caminho. Então, ele mergulhou e não recuou.

No Rio, a resposta do governo contra o tráfico é truculenta. Há mais de três décadas é tiro, porrada e bomba. Sem políticas públicas, educação ou melhorias. A “meta” é “só na cabecinha”, segundo o governador Witzon Witzel. Entre janeiro e julho de 2019, o número de mortes em confrontos com a polícia no estado já são 1.075 casos, recorde da série histórica. Só no mês de julho, foram 194 autos de resistência – uma média de um a cada 4 horas, aproximadamente. O dado foi divulgado pelo Instituto de Segurança Pública do governo.

Enquanto isso, o sonho do menino José, que tem 16 anos, é ser camelô. Quer ganhar dinheiro honesto e limpo como seus amigos de infância vêm conseguindo. Nos olhos cansados do “Segurança da Areia”, há um pedido de ajuda que ecoa.

Esta até pode ser uma história que se encaixe em um dos personagens de Jorge Amado, mas, infelizmente, é a realidade de um jovem que, como tantos outros, mora perto de você, junto e misturado, neste Rio 40 graus, cidade purgatório que une beleza e caos, em versos de funk e nas areais de Ipanema.

*Esse texto foi produzido originalmente por estudantes do Curso de Comunicação Popular do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC). Quando a equipe de comunicadores realizava uma apuração sobre mobilidade urbana para chegar à praia para o jornal Vozes das Comunidades de 2019, encontraram o “segurança da praia” dentro do metrô e, conversando com ele, descobriram sua história. Ela nos ajuda a tentar compreender um pouco melhor sobre a cidade que vivemos para além das notícias factuais dos jornais que narram o Rio de Janeiro.

Edição: Tatiana Lima


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