Protagonismo das escolas em assentamentos quebra preconceitos sobre ensino no campo

Por Anelize Moreira/Brasil de Fato (SP) – Os saberes da terra, ligados ao território onde os alunos estão inseridos, são tão importantes quanto o conteúdo de matemática, português, história e outras disciplinas curriculares. É assim o entendimento sobre educação nas escolas do campo: o conhecimento deve servir também para vida camponesa.

Nas mais de duas mil escolas públicas construídas em assentamentos e acampamentos, o ensino também é guiado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – documento que define os conteúdos essenciais em escolas de todo o Brasil. No entanto, na modalidade de educação no campo, são valorizados também conteúdos conectados a própria realidade dos alunos, como agroecologia, alimentação saudável e sem veneno e valores como cooperação, solidariedade e valorização cultural.

 

A assentada Gilda Maria Fernandes Pascoal, de 50 anos, têm dois filhos que estudam na Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber que fica no assentamento Eli Vive I, no município de Londrina, Paraná. Ela conta da satisfação que tem quando os filhos, José e Daniel, chegam em casa, trazendo o que aprenderam. “O meu filho José, tudo que é trabalhado em sala de aula, ele chega em casa e passa pra gente, por exemplo alimentação saudável. Ele não é muito de comer verdura, mas, a partir das aulas, ele passou a comer. E ele pega muito rápido os conteúdos e leituras de matemática, história, português”.

A escola atende 185 alunos de quatro até os onze anos. No mesmo espaço, além da escola estadual funciona um colégio estadual que atende jovens do 6º ano ao ensino médio. Gilda diz que está satisfeita com o ensino que os filhos recebem, porque, ao mesmo tempo que ajuda a desenvolver visão crítica,  valoriza as origens camponesas.

 

Essa pedagogia que propõe uma visão emancipadora, crítica e ligada à realidade dos estudantes era preconizada pelo educador Paulo Freire. Conhecimentos que Gilda quer ajudar a passar para outros jovens. Atualmente auxiliar de limpeza na escola, está prestes a concretizar o sonho de ser educadora. Ela está no quarto ano de graduação do curso de licenciatura em educação no campo na Universidade Federal da Fronteira Sul, no campus de Laranjeiras do Sul, no assentamento 8 de junho. No meio deste ano, apresenta o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), com o tema das cotas raciais.

“Sempre foi um sonho, desde jovem. E minha vida sempre esteve ligada a escola. Já trabalhei como merendeira, educadora, secretária, mas meu sonho foi sempre estudar e agora estou realizando esse sonho”, conta.

 

Duas escolas em assentamento no Piauí se destacaram na qualidade de ensino. Elas obtiveram, em 2017, os maiores índices na educação básica do município, segundo o Índice de Desenvolvimento na Educação Básica (IDEB): a Escola Sabino Bernardo, no Assentamento Palmares, município de Luzilândia; e a Escola Amadeus Carvalho no Assentamento Marrecas, em São João do Piauí.

Para o agricultor, Nemoel Klessler Costa Silva, assentado e diretor da Unidade Escolar Bernardo Sabino, um dos diferenciais da unidade é autonomia dos professores no processo de ensino, que ele considera essencial para o aprendizado dos alunos. Porém, ele ressalta que há muito preconceito em torno das escolas em assentamento.

“Uma escola do campo é considerada por muitos como rebelde, por causa da nossa filosofia e nosso trabalho. Isso acontece porque a gente não cala, não consente muito e luta pelo que a gente acredita. Então, muitas vezes, a gente é considerado rebelde, essa ‘escolinha do campo’, do interior, que ficou em primeiro lugar no Ideb, com notas maiores que escolas do próprio município que são consideradas boas e grandes e ficaram abaixo”, comenta o diretor.

 

Segundo a educadora da escola Ildener Pereira de Carvalho há dificuldade em admitir que uma “escolinha de assentamento” tenha conquistado boas notas. Ela reforça que isso acontece, porque a educação praticada no campo não segue somente os moldes curriculares, mas está conectada ao território onde vivem esses meninos e meninas.

“Historicamente as pessoas consideram que quem vem do campo e tem origem camponesa é incapaz de aprender, de desenvolver o nosso espaço, principalmente com a escola no assentamento. Elas usam o termo sem-terra – que pra nós é motivo de orgulho – como se fosse uma coisa assim pejorativa. Ensinamos o que vai servir para a vida e nossa escola é a que mais prepara. As pessoas têm muita resistência a isso, por conta dessa cultura, de entender educação como conservadora, bancária, e que eles acreditam que é a certa”, ressalta Ildener.

Apesar de não ter tido divulgação e nem valorização por parte da prefeitura, o desempenho no Ideb fez com que a escola do Piauí quebrasse o preconceito na comunidade sobre o ensino das escolas de assentamentos e as matrículas nesse ano aumentaram. Segundo o diretor isso demostra que o trabalho está no caminho certo. “As comunidades do entorno perceberam essa evolução e isso quebrou de fato aquele preconceito de uma visão distorcida que as pessoas tinham. Os pais chegavam dizendo: ‘A gente pensava que aqui era uma coisa e a gente tem visto que a escola tem crescido, tem avançado e eu quero que meu filho estude aqui”, conta.

A Escola Bernardo Sabino atende 205 alunos, que não são apenas assentados, mas também de comunidades rurais do entorno, desde o maternal até ensino de jovens e adultos. No assentamento onde está localizada, a escola produz e comercializa, para consumo familiar, produtos como feijão, milho, hortaliças, melancia, peixe, galinha e bovinos para corte e leite. Também, frutas e artesanatos.

A educadora Ildener tem três filhos e todos estudaram na escola do assentamento. Um deles é Gabriel Luís Carvalho Silva, 20 anos, que vai fazer faculdade de Medicina na Venezuela. Gabriel acredita que uma das diferenças entre a escola do campo e da cidade é que, nessa última, falta cooperação, algo que permeia o dia a dia dos camponeses. “Eu não gostei de estudar na cidade. É muito diferente, parece que os professores e alunos é cada um na sua, não tem tanto trabalho em grupo”, lembra.

 

Além disso, o ex-aluno da escola notou que na unidade do assentamento o aprendizado extrapola a sala de aula, principalmente na área cultural e sobre o próprio território. Para ele, é preciso desconstruir a ideia de que o ensino na escola do campo não é bom. “Acho que escola do campo não é atrasada, porque se fosse atrasada eu não teria passado em dois vestibulares em universidades públicas, até porque a maior da minha formação foi no campo.”

O filho da educadora pretende atuar como médico na zona rural, pois faltam esses profissionais na região para atender a população. “Eu pretendo de fato depois que formar, voltar para o campo, porque nunca vou esquecer as minhas origens. Acho que o campo é um melhor lugar para se trabalhar, onde se tem pessoas mais humildes”, explica.

Gabriel vai cursar Medicina através do Projeto Escuela Latinoamericana de Medicina (ELAM). Desde 2005, mais de 100 médicos sem-terra se formaram em Cuba e na Venezuela. Eles atuam em 16 estados brasileiros no Sistema Único de Saúde (SUS) e atendem principalmente a população mais pobre da zona rural e das periferias. Além disso, dois mil assentados estão cursando ou já concluíram cursos técnicos e superiores.

O professor Márcio José Barbosa, da Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber, no assentamento Eli Vive I, começou a lecionar em escolas itinerantes do Paraná, que tem a proposta de garantir a escolarização de crianças nos acampamentos – fase inicial da ocupação, até que a terra seja regularizada pelo governo. Ele conta que, apesar das dificuldades, é gratificante ver a perspectiva de futuro para crianças e jovens assentados.

“Nessa trajetória toda como professor no ensino fundamental e médio, a gente vê a perspectiva dos alunos de continuar os estudos, de fazer uma faculdade e consegue demonstrar para sociedade que estamos fazendo um trabalho com qualidade garantindo o direito de educação para as crianças. Isso recompensa todo esforço e todas dificuldades que a gente encontra no dia a dia”, conta o educador, que também é pai de dois meninos que estudam na escola do assentamento.

Apesar dos avanços, um dos maiores desafios nos assentamentos ainda é promover educação superior, já que as universidades na maioria das vezes estão concentradas nas cidades. No assentamento onde funciona a Escola Municipal do Campo Trabalho e Saber há dez anos, vivem 501 famílias nas duas áreas Elivive I e Elivive II.  No local, elas produzem diversas culturas agroecológicas como batata doce, milho, arroz, feijão, café, hortaliças e produção de leite e soja.

Além das unidades do Piauí e do Paraná, no terceiro capítulo da série “Saberes da Terra” você vai conhecer outra escola do Pará que tem lutado pelo direito a educação no campo – diante de todas as adversidades que uma escola pública rural enfrenta – para levar conhecimento às crianças e adolescentes camponeses.

Edição: Aline Carrijo/Tayguara Ribeiro


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