OPINIÃO | Quando a eleição terminar, o que será do amanhã?
[Por Juan Leal*] Pode parecer uma discussão prematura ou desatinada diante da turbulência pela qual o processo eleitoral brasileiro está passando, talvez os que comungam do pragmatismo institucional digam que o projeto de centro-esquerda vencerá nas urnas e reconstruiremos o país, mas, ao contrário, proponho uma questão que ainda permanece obscura no momento: qual é o futuro que estamos construindo para o presente após o fim dessas eleições? Rechaçando a inversão da máxima de Rolland (popularizada por Gramsci) ao invocar certo “otimismo da razão” na crença de que o povo será feliz de novo com uma vitória no pleito eleitoral, a conjuntura tem mostrado que a nova fase capitalista que se instaura de maneira globalizada imporá sua reorganização custe o que custar. Ainda que o preço seja a democracia.
A ascensão de um candidato fascista no Brasil é resultado de diversos fatores, inclusive a própria realidade material de miséria, desemprego e violência exacerbados. Contudo, ainda que cautelosamente, destaco a campanha jurídico-midiática contra o projeto petista e, consequentemente, contra toda a esquerda. É muito relevante e revelador que o ex-presidente mais popular da história democrática esteja preso. A distinção deste último fator é fundamental para compreendermos o deslocamento do eixo de polarização política da sociedade e, a partir disso, como o processo eleitoral não tem permitido que se apresente um projeto à esquerda do PT. Com a aceitação de uma grande parcela da população ao discurso simplista do candidato fascista – ainda que isso não signifique necessariamente uma adesão ao projeto fascista -, a polarização política passou a ter: de um lado a referência na extrema-direita, e, no outro, aqueles que se encontram no espectro do centro justificado pelo pragmatismo eleitoral. Para barrar o avanço do Bolsonaro, o voto útil no candidato com mais chances de derrotá-lo ganhou força. O medo estabeleceu os limites da polarização. Esta é uma observação um tanto quanto clara, mas é dela que surge uma pergunta crucial: como a centro-esquerda será capaz de refundar seu projeto institucional depois de sua falência culminada no golpe de 2016?
O golpe que retirou Dilma do poder nos ensinou que não há espaço para conciliação de classes no momento atual do capitalismo. A grande burguesia demonstra que não aceitará pôr em risco seus lucros exorbitantes – inclusive, conquistados durante os próprios governos do PT – em detrimento de um projeto público de seguridade social e de Estado grande. As retiradas de direitos da classe trabalhadora têm sido violentas e ainda permanecem em pauta. Diante do atual caos social, o tal “otimismo da razão” tem criado a ilusão de que este grave problema parece solucionável pela via eleitoral nos moldes atuais. No entanto, as conjunturas em diversos outros países demonstram que a realidade brasileira não é somente fruto das consequências tardias de uma história construída a partir de revoluções passivas, mas sim de um projeto do capital.
A eleição de Emmanuel Macron, na França, evidenciou que os intermediários políticos dos bancos e do grande capital financeiro não são mais necessários para a consolidação do programa neoliberal e, em menos de um ano, uma dura reforma trabalhista foi implementada. O fenômeno de um candidato banqueiro acendeu a luz de emergência sobre a ofensiva do capital. E, ainda, disputou acirradamente o segundo turno com uma candidata representante da extrema-direita. Poucos anos antes, em uma crise sem precedentes, a população da Grécia sofreu com a ofensiva autoritária do FMI e da União Europeia. A saída imposta pelos credores internacionais custou pacotes de austeridade e reformas de Estado que retiraram diversos direitos da população, inclusive endurecendo a repressão sobre a convocação de greves. O primeiro-ministro na época, Alexis Tsipras, apesar de sua filiação ao Syriza, sucumbiu ao capital pela lógica não mais aceitável da conciliação. A Europa também tem sido, nos últimos anos, espaço de um crescimento exponencial da extrema-direita e as últimas eleições parlamentares de alguns países foram marcadas pelo fortalecimento desses partidos em locais onde a social democracia era, até em então, sólida. Na Suécia, por exemplo, o Partido dos Democratas, com origens no nazismo, atingiu seu recorde histórico e tornou-se o terceiro maior do país. Ao contrário da narrativa criada pelos donos do poder, a crise da democracia participativa não tem origem em si mesma, mas na própria reorganização do capital, e é sistematicamente impulsionada pelo financiamento das classes dominantes. Portanto, mesmo com o concomitante crescimento do “não-voto”, os panoramas políticos indicam o sucesso do processo em curso de transição capitalista. E, como método, tal processo tem sido imposto à revelia dos valores democráticos, dissimulado a partir da legitimidade das urnas.
A escalada autoritária em curso no Brasil não é fato isolado dos acontecimentos internacionais que vêm ditando a relação entre capital e trabalho. Com a iminência de um crescimento da centro-esquerda nas eleições, o presidenciável fascista passou a integrar a agenda dos banqueiros e, hoje, conta com o apoio do capital financeiro e especulativo. Fato evidenciado sem pudores pelo comportamento da bolsa de valores diante dos eventos que influenciam em sua candidatura. Esta imbricada relação que se estabeleceu durante o processo eleitoral demonstra que o verniz da democracia não é mais capaz de dar boa aparência aos interesses nefastos das classes dominantes e os discursos autoritários passaram, novamente, a ser servis a eles. Diante deste cenário, não é possível depositar certeza na estabilidade da democracia brasileira independentemente do resultado eleitoral, confiando às urnas o futuro da classe trabalhadora. O prognóstico indica que um governo, qualquer que seja sua identidade ideológica, que não se coloque subserviente ao projeto atual do capital dificilmente será capaz de manter-se no poder institucional. Dada a nossa já fragilizada democracia, intervenções e fechamentos de regimes soam como soluções cada vez mais atraentes.
Pela manutenção da crença nos princípios leninistas de organização da classe trabalhadora, de nenhuma forma sugiro, aqui, que percamos a disposição de construção dos partidos, tampouco que abandonemos o processo eleitoral em curso. É preciso, sem ressalvas, derrotar fragorosamente o representante fascista nas urnas. Contudo, a vitória nas eleições não garante a hegemonia do projeto progressista, ao contrário, este se mostra débil pela incapacidade de disputarmos a produção cultural através de ferramentas e métodos capazes de gerar uma profunda transformação de sentido na sociedade. Esta debilidade já se fez manifesta no pós-golpe de 2016, quando as conquistas que perduraram 13 anos foram desfeitas em 6 meses sem que as organizações populares tivessem qualquer poder de influência na correlação de forças. Mesmo que nossos impulsos de autoafirmação digam o contrário. As tentativas de cooptação dos movimentos sociais durante os governos petistas e o consequente descompromisso na construção de consenso da sociedade civil em torno do projeto da esquerda refletiram-se na dificuldade de mobilização popular diante das bruscas retiradas de direitos. Perdemos todas as batalhas desde então. Por isso, o aprendizado histórico deve ser o farol nesse momento em que vemos a democracia ruir pelo autoritarismo e pela onda fascista. Para tanto, a reflexão sobre construções que excedam a institucionalidade burguesa é urgente e não menos necessária do que a campanha eleitoral, pois a nossa capacidade de incidir na realidade após o resultado apurado no pleito depende sobretudo de ferramentas consistentes de organização. É preciso reinventar as formas de diálogo, os métodos e os instrumentos para que sejamos capazes de disputar essa sociedade intensamente polarizada e tendente a reafirmar o projeto do capital. Se o capitalismo modificou as relações de trabalho, a esquerda deve compreender de quais formas as explorações e opressões se manifestam na materialidade da vida das trabalhadoras e trabalhadores, para que a identificação com o projeto revolucionário tenha sentido real. Isso não se resolve nos processos eleitorais, e o atual escancara que estamos distantes desse entendimento. Atentos ao resultado das urnas, essas inquietações devem estar na ordem do dia de uma esquerda em que o pessimismo da razão é sustentação do seu comprometimento com a transformação social.
*Juan Leal é produtor cultural e membro da Escola de Teatro Popular – RJ.
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