Entre São Luís e Carajás – 20 anos depois
[Por Rogério Almeida – FURO] Peguei o trem em Parauapebas para São Luís do Maranhão. E o trem danou-se naquelas brenhas, a ranger os trilhos, vencer misérias, solidões e distâncias. A queimar diesel por mais de 14 horas, a cortar áreas indígenas, quilombolas e territórios camponeses, a desagregar laços de amizade, solidariedade e familiares. Vez em quando a trucidar gentes e animais. E o trem danou-se….
Não havia ar condicionado na classe econômica do trem da Vale quando pela vez primeira corri o trecho. O magote de tempo tem perto de duas décadas. A ferrovia já somava pouco mais de dez anos. Tempos idos. Dias em que a professora Maria Celia Coelho organizou o livro sobre a primeira década da Estrada de Ferro de Carajás (EFC), pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicas da UFPA.
A neófita geógrafa Elis Miranda assinava um relato sobre a viagem do trem entre Parauapebas, no sudeste do Pará, até o porto do Itaqui em São Luís, no Maranhão. Perto de mil quilômetros separam uma das principais províncias minerais do mundo da capital ludovicense.
Naqueles dias a classe econômica do trem era uma versão atualizada da senzala. O calor causticante fazia crianças e idosos passarem mal. O odor de vômitos e diarreias enchiam os vagões. Uma sofrência só. O povo do trecho cheio de esperança carregava o bucho vazio. O povo levava todos penduricalhos que a pobreza permitia arrastar.
Os párias cheiravam a suor forte e cigarros vulgares. Em trajes rotos aguardavam a liberação do portão em busca de um lugar para sentar no vagão. A pobreza não tem cadeira numerada no maior trem do mundo. Meio mundo de gente a buscar dias menos doridos. Um turbilhão de humilhação.
Entre um vagão e outro era permitido fumar. Havia um vão que concedia a entrada do vento. Mesmo vão que gente a padecer de mal de amor se jogava para fora do veículo.
Naquele tempo homens, mulheres e crianças à cada parada das 14 estações em que o trem corta, afrontavam as cidadelas das janelas dos vagões da classe econômica. Vendiam de tudo: água, carne de caça, peixe frito, milho assado, maçãs, biscoitos, etc.
Naqueles dias era vetado ao cliente da classe econômica percorrer para fora do seu quadrado. Ao passageiro da classe executiva tudo era permitido. A locução do veículo anuncia a próxima estação: Nova Vida. Serão cinco minutos para embarque e desembarque. Fosse naquele tempo, eu procuraria um milho assado.
As mãos calejadas da roça e outras tarefas deixavam as garrafas pet sujas por fora. Uma mistura de poeira com o degelo dos frascos. O tempo do trem é pouco. Os que arriscavam passar sob o vagão, vez em quando não obtinham êxito.
A carreira do trem de passageiro é desaperreada. E, sempre que o trem de carga cruza o trecho, ele se acanha e para. É a lei do mercado. Força de contrato. O trem de passageiro é só uma compensação ao saque.
Naquele tempo, os anos 90 emitiam os derradeiros suspiros. Por conta do Massacre de Eldorado, prestes a contabilizar 22 anos de impunidade, o Estado reconheceu em grande escala várias áreas ocupadas por sem terra de diferentes filiações como projetos de assentamento da reforma agrária. Em particular na Amazônia. Ênfase nas terras do massacre.
Naqueles dias idos a onda privatista entregou a Vale de mão beijada. Tanto tempo depois, a lama da Vale sufocou Mariana nas Minas Gerais. Feriu de morte o Rio Doce e toda vizinhança. O rio não tá pra peixe, que o diga o povo de Barcarena.
O tempo do trem é pouco. Na estação de Presa de Porco o cronômetro impõe três minutos para embarque e desembarque. O tempo do trem de passageiro é pouco. Durante a semana três dias são dedicados para ir ou voltar de Parauapebas a São Luís. E, vice-versa. É reggae, bumba meu boi, rumba e brega. Vizinhanças, arraiais, puteiros e currutelas.
Todos os dias por inúmeras vezes o trem de carga não cessa. É o maior do mundo. Mais de 300 vagões. Umas três locomotivas a fazer a máquina correr. A fazer a máquina rodar. Riqueza a sangrar por mais de 30 anos. Quem vai colocar os pontos nos IS? Quem vai colocar tudo na ponta do lápis, a Lei Kandir em xeque?
Corre o dia. Metade da viagem. Mais de meio dia. Açailândia/MA ficou para traz. Corre o tempo. O monocultivo de eucalipto impregna a paisagem. Açailândia era uma perna do polo de gusa do Projeto Grande Carajás. Marabá/PA a outra. A decadência nubla o polo desde os anos iniciais da década de 2000. Passados perto de 20 anos. Tudo mudado. Menos de 60 minutos separam Nova Vida de Presa de Porco. Corre o trem.
É tempo de chuva. Os dormentes antes de madeira dão lugar a dormentes de cimento. Enquanto o minério de ferro considerado de melhor teor do planeta, na Serra Norte, em Parauapebas míngua, a Serra Sul (S11D), em Canaã dos Carajás pulsa.
A EFC está em fase de duplicação por conta do atual/velho cenário de saque. É ouro! É ferro! É níquel! É cobre! É minério de tudo que é jeito. É o fim do caminho? Quem cobrará pelo sangue derramado dos ancestrais? É desmatamento! É execução! É massacre! É trabalho escravo a dar de pau! Aos contrários é processo na vara cível e criminal! O caminho tem fim?
Quase vinte anos depois o trem de passageiro melhorou. Tanto a classe considerada executiva, como a catalogada como econômica contam com ar condicionado. Não existe mais vão entre um vagão e outro. Existe um vagão dedicado a refeição e o de lanchonete, que também atende com refeição. No trem de passageiro não há vagão para indignação.
Os dias atuais continuam a desorganizar os territórios ancestrais. Agora o epicentro é Canaã. Em São Luís a comunidade do Taim tem sofrido pressões a ceder suas terras aos interesses do grande do capital. Em Itapecuru Mirim, ainda no Maranhão, são os quilombolas os afrontados. Entre Canaã a São Luís onde existe leite e mel a jorrar?
E o trem danou-se naquelas brenhas…