Em meio a cenário de retrocessos, enredos de escolas de samba trazem temas de luta
Por Bruna Caetano/Brasil de Fato | São Paulo (SP) – O samba, como expressão cultural do povo negro brasileiro, é marcado em sua história pelo símbolo de luta, uma característica também presente na festa mais popular do país: o carnaval. As escolas de samba, com a visibilidade que adquirem nessa época do ano, muitas vezes usam os holofotes sob a festa para pautar questões relacionadas aos grupos marginalizados e à política institucional.
A escola do grupo especial do Rio de Janeiro, Paraíso do Tuiuti, ganhou destaque no carnaval passado ao levar para a Sapucaí o enredo sobre os 130 anos da Lei Áurea, onde questionava se a escravidão está realmente extinta. A escola causou polêmica ao denunciar o golpe de 2016 colocando na avenida um vampiro com faixa presidencial, em alusão a Michel Temer, que ocupava o posto da Presidência da República.
Neste ano, a vice-campeã traz o samba-enredo O Salvador da Pátria, e no último ensaio técnico, exibiu na Comissão de Frente homens engravatados representando políticos, e bailarinas com roupas e perucas na cor mais comentada do ano: a laranja, representando as recentes polêmicas de candidaturas do PSL, partido de Jair Bolsonaro.
Também do Rio de Janeiro, a Estação Primeira de Mangueira vai contar a história de heróis populares através do samba História pra Ninar Gente Grande, enaltecendo o legado de pessoas como Luísa Mahin, Dandara e Marielle: “Brasil, meu dengo / A Mangueira chegou / Com versos que o livro apagou / Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento / Tem sangue retinto pisado / Atrás do herói emoldurado / Mulheres, tamoios, mulatos / Eu quero um país que não está no retrato” canta o enredo.
De acordo com Tiaraju Pablo, coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP) e pesquisador sobre carnaval, os sambas-enredo sempre incomodaram o poder político exatamente por trazer esse caráter crítico. Em 1969, por exemplo, o Império Serrano teve seu desfile cerceado por helicópteros por criticar a ditadura militar na avenida, com o samba Heróis da Liberdade.
Entre os anos 80 e 90, houve um ápice de enredos com esse caráter através de sátiras, ou de denúncia das mazelas sociais como fazia a escola São Clemente. Em 1988, a Unidos de Vila Isabel e a Mangueira questionavam o mito da abolição da escravatura, e em 1989, a Beija-Flor emplacou o samba Ratos e Urubus Larguem Minha Fantasia, conquistando o segundo lugar, atrás da Imperatriz Leopoldinense com Liberdade, Liberdade.
Para o especialista, as escolas de samba retornam a essa vocação crítica a partir de 2016. A Imperatriz Leopoldinense, por exemplo, foi perseguida em 2017 pelo agronegócio por tratar dos povos do Xingu em seu desfile. “Jardim sagrado, o caraíba descobriu / Sangra o coração do meu Brasil / O belo monstro rouba as terras dos seus filhos / Devora as matas e seca os rios / Tanta riqueza que a cobiça destruiu!” diz o samba Xingu, o Clamor Que Vem da Floresta.
O samba sempre foi negro, e colocar em pauta as africanidades é um papel que as escolas desempenham desde sempre. Isso acontece, principalmente, nas escolas que possuem uma raiz ainda mais popular como a Nenê de Vila Matilde, Camisa Verde e Branco e Unidos do Peruche, que esse ano traz o samba Nascem do Ventre Africano, Os Valores do Mundo. África, um Passado Presente no Futuro da Humanidade. Segundo a historiografia, o primeiro tema afro foi o do Salgueiro, no carnaval de 1960, falando de Zumbi dos Palmares. Mas, em 1956, a Nenê de Vila Matilde já havia levado o enredo Casa Grande Senzala, como explica Tiaraju.
Ele acredita que, atualmente, os enredos sobre negritude e africanidades estão em alta por três motivos: os setores progressistas da sociedade passaram a notar o potencial crítico das escolas, o debate racial está em um nível avançado e existem críticas de setores conservadores da sociedade sobre as religiões de matriz africana. “Quando as escolas de samba e as religiões afrobrasileiras estavam sob ataque, por volta de 2016, perceberam que só sobreviveriam se incorporassem essa vertente crítica. Elas foram para o ataque.”
Para o pesquisador, as escolas de samba se tornam ainda mais importantes quando retratam o país de forma crítica. “O carnaval é irreverente, crítico e um momento de denúncia. As escolas de samba são uma síntese do Brasil, e são capazes de retratar sensações e passar uma mensagem de maneira épica e através de um cortejo. Quando ela se reencontra com esse Brasil profundo e consegue levar isso para a avenida, é quando a escola de samba cumpre ao máximo seu papel.”
Esse ano, a Vai-Vai, Unidos do Peruche, Mancha Verde, Pérola Negra, Paraíso do Tuiuti e Mangueira são algumas das escolas colocam no Sambódromo do Anhembi e na Marquês de Sapucaí a cultura afrobrasileira e as denúncias das mazelas da política nacional.
Edição: Mauro Ramos
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