Ditadura na democracia

Foto: Luiz Baltar

[Por Gizele Martins e Jessica Santos*] A fala é de uma mulher de 47 anos, moradora de uma das favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro, que teve o filho assassinado há um mês pela Polícia Militar. Depoimentos como este são constantes nas favelas e periferias da cidade. É comum o trânsito dos tanques de guerra, as revistas vexatórias e ilegais, a presença de soldados armados, o uso massivo de helicópteros aéreos nas operações dentro das favelas, o aumento no número de desaparecimento forçado, chacinas e o consequente aumento do número dos chamados autos de resistência — mortes decorrentes da ação policial. Estes são alguns dos problemas enfrentados pelos moradores do Rio de Janeiro diante da intervenção militar implementada pelo governo de Michel Temer em 16 de fevereiro deste ano. Todas estas ações usam como justificativa um suposto enfrentamento da violência e se utilizam de dispositivos legais de exceção como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), operação prevista na Constituição Federal realizada exclusivamente por ordem do presidente da República, da qual autoriza o uso das forças armadas.

Nesses primeiros meses de intervenção, dados contabilizados pelos órgãos do próprio Estado mostram que, em relação ao ano anterior, houve um aumento dos números dos casos de auto de resistência. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) apontaram um aumento de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial. Foram registrados nos seis primeiros meses de 2018 um total de 766 casos, maior número registrado desde 2003. Nos primeiros cinco meses de Intervenção, foram registrados pelo aplicativo Fogo Cruzado, 4005 tiroteios ou disparos de arma de fogo na Região Metropolitana do Rio. Foram 2924 nos cinco meses anteriores.

De janeiro a julho, se investiu mais no que chamam segurança pública, do que em saúde, educação, cidadania e outros direitos.

“Materializa-se isso quando a Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro diz que, nos últimos 10 anos, o orçamento da segurança pública do Rio, atualmente sob intervenção federal militar, cresceu 136%. Os volumes de recursos saltaram de R$ 5,2 bilhões de reais em 2008, para R$ 12, 2 bilhões em 2017”, destaca Fransérgio Goulart, pesquisador do Fórum Grita Baixada, movimento localizado na Baixada Fluminense.

Temer legitimou a Intervenção Militar do Rio para dar respostas aos que classifica como roubo de cargas. Mais uma vez, os governantes buscam dar respostas rápidas aos empresários, sem medir as consequências na vida da população favelada. Mais uma vez, é a favela que sofre com o aumento do poderio militar com tanques de guerra com e o uso de GLOs violando as próprias leis da democracia.

“Este momento de Intervenção Militar é um incremento da política de enfrentamento, daí morrem todos. Pois a partir do momento em que você vê a necessidade de resolver o problema imediatamente, você ignora o direito à vida e todos os outros direitos de uma população pobre. Além disso, existe uma total ausência de investigação: seja a partir do desfeito dos locais dos crimes, seja pela falta de pessoas preparadas, técnicas. Outro dado é que quando a polícia mata mais, ela prende menos e é este o momento em que estamos passando agora”, afirma Thales Arcoverde Treiger, defensor público da união.

Segundo o defensor, o desafio é ir além dos números contabilizados pelos órgãos do Estado e buscar saídas para o aumento no número de casos de auto de resistência, pois, com a intervenção, gera-se uma dúvida de quem deve cobrar, quem deve investigar, para onde os casos devem ser encaminhados.

Quem investiga o exército e as polícias?

Diante do aumento de chacinas, de desaparecimento forçado, de operações e dos casos de auto de resistências, grupos que formam o movimento de favelas, junto às Defensorias Públicas do Estado do Rio de Janeiro e da União e da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alerj, organizaram uma agenda de visitas em mais de 40 favelas e periferias de todo o Rio de Janeiro que recebe o nome de Circuito Favelas por direitos: Intervenção Não!. O objetivo é colher depoimentos, ouvir moradores e moradoras, saber quais os tipos de violações as favelas e periferias sofrem e passaram a sofrer neste momento, partindo do entendimento de que estas são as que mais sofrem e ainda vão sofrer com a militarização.

Mais de 10 visitas já foram realizadas desde março. Depoimentos de moradores dão conta de aumento de invasões dentro das casas, roubos de dinheiro e de objetos, pessoas desaparecidas, chacinas, revistas vexatórias, principalmente de jovens negros, além do número de casos que aparecem como auto de resistência. Em apenas uma favela da Zona Oeste do Rio, em uma semana de operação com uso de blindados terrestres, aéreos e policiais militares e civis, além de tanques de guerra, 22 duas pessoas foram assassinadas, sendo que apenas seis corpos apareceram, todos registrados como casos de auto de resistência. Os demais se encontram desaparecidos, assim como nos anos 1990. A situação se repete em outras favelas e periferias.

Neste cenário, o relançamento da Campanha Caveirão Não também trabalha para dar visibilidade e pressionar o judiciário nas investigações dos casos. Segundo dados veiculados pelos integrantes da campanha, o número de homicídios decorrentes de intervenção policial no estado do Rio teve um aumento de 96,7% no mês de março de 2017, em comparação com o mesmo período de 2016, passando de 61 para 120 vítimas. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, já são mais de 813 mortos pelas polícias do Estado de janeiro a setembro deste ano, em homicídios em que a polícia alega ter agido em suposta legítima defesa. Outro dado que chama atenção é que a Baixada Fluminense concentra 46% dos homicídios de todo o estado. A campanha também vem pautando a luta contra o racismo do judiciário.

“Mais de 90% dos autos de resistências, quando conseguimos levar a julgamento, são arquivados por esse judiciário, mesmo com provas periciais comprovando tiros pelas costas. A vítima passa a ser acusada a partir de uma pergunta racista que boa parte dos juízes e juízas fazem nos julgamentos às mães e familiares vítimas do Estado: se o filho tinha algum tipo de convivência com o tráfico. Com essa indagação fazem com que a vítima passe a ser vista como o violador. O julgamento era da violação da polícia, e não se aquele menino tinha ou não relação com o tráfico, até porque, todos nós que moramos em favelas convivemos com o tráfico”, explica Fransérgio.

O ativista e pesquisador conta que a Campanha organizou atos em frente ao Ministério Público para denunciar isso e outras ações racistas do judiciário. Com esses atos e a partir do protagonismo das mães e familiares da violência do Estado, houve uma abertura com o Ministério Público — por meio do Grupo de Atuação Especial da Execução Penal e da assessoria de Direitos Humanos do MP — que resultou no desarquivamento de alguns processos que estavam parados.

“Precisamos entender que há um sistema de segurança racista, onde como as mães e familiares dizem: A polícia é a ponta e aperta o gatilho e o judiciário racista absolve esse executor”, conclui.

Auto de resistência: os casos aumentam, as investigações diminuem

Historicamente, as favelas e periferias do Rio de Janeiro enfrentam violações cometidas pelos órgãos do Estado, principalmente no que se refere ao tema da segurança pública. Neste espaço empobrecido, tendo em sua maioria uma população negra, a ordem para matar é legitimada pelos próprios governantes a partir de um falso discurso de guerra às drogas.

Uma prova de como funciona a criminalização da pobreza e o racismo para o espaço favelado é quando, nos anos de 1990, os policiais passaram a receber a chamada “gratificação faroeste”. Foi então que ganhou destaque o dispositivo legal conhecido como “auto de resistência”. Presente desde a época da ditadura militar, tal classificação administrativa passou progressivamente a ser empregada para designar as mortes resultantes das ações policiais e, durante o governo Marcelo Alencar, seu uso chegou a ser estimulado por uma remuneração concedida a policiais militares intitulada “premiação por bravura” ou “gratificação faroeste”.

O “auto de resistência” foi criado em 1969, após o AI-5 (dezembro de 1968), como medida interna da própria polícia, a fim de justificar e minimizar a prisão em flagrante de policiais autores de homicídio. Imediatamente, passou a ser usada pela imprensa naturalizando as versões dos militares e da polícia para os “teatrinhos” (como os próprios diziam à época) com que justificavam os assassinatos de presos políticos na tortura: às vezes, também explicados como “excessos” de tratamento ou “suicídio”, como explica João Costa, do Grupo Tortura Nunca Mais.

Para Patrícia Oliveira, integrante do Mecanismo de Combate à Tortura do Rio de Janeiro, esse instrumento levou à criação de grupos de extermínio e ao aumento vertiginoso do número de chacinas. “

Naquela época, os policiais que mais matavam ganhavam mais. Recebiam um bônus que ficou conhecido como a “gratificação faroeste”, o que fez aumentar muito o número de pessoas assassinadas. Surgiram vários casos de crianças e adolescentes assassinadas. Eram constantes as operações em favelas. Surgiram vários grupos de extermínios. Os ‘Cavalos Corredores’, por exemplo, era um deles. É daí que surgem as várias chacinas no Rio de Janeiro. A polícia mostrou a sua cara naquele momento”, conta.

Cavalos Corredores, a que se refere Patrícia, foi um grupo de extermínio formado por policiais militares do 9° Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Eles foram responsáveis pela Chacina de Vigário Geral, em 1993, que vitimou 21 pessoas.

Diante do aumento das chacinas e dos casos de auto de resistência durante a década de 1990, movimentos sociais de favelas junto a organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional, passaram a pressionar os governantes da época para que se comprometessem com a investigação dos casos.

Mais de uma década depois, já nos anos de 2007, mais uma vez os números de chacinas e de autos de resistência passaram a aumentar nas favelas e periferias. Ainda de acordo com Patrícia, esse aumento em 2007 tem a ver com as políticas, práticas e com os preconceitos dos governantes e de toda a sociedade em relação a população moradora desses territórios. “Os casos aumentam quando temos os próprios governadores afirmando que a solução só vem a partir do investimento na segurança pública. Exemplo disso é quando o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, diz que ‘mulher de favela é fábrica de produzir marginal’. É uma autoridade pública fazendo falas de ódio e de violência e dizendo que vai resolver com mais violência”, denuncia.

Em 2008, foram implementadas, em algumas favelas do Rio de Janeiro as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que estiveram por 10 anos em 38 favelas. Estudiosos sobre o tema afirmam que nos primeiros anos de UPP houve uma diminuição nos casos de auto de resistência dentro destas favelas, mas que aumentou o número de desaparecimentos, segundo dados do relatório Autos de resistência: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do rio de janeiro (2001–2011), coordenado pelo Prof. Michel Misse, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Paralelo à implantação das UPPs, a partir de 2009, a Secretaria de Segurança Pública criou um programa de metas para a redução de alguns indicadores da violência, incluindo homicídios dolosos.

A partir do começo de 2011, este programa passou a incluir metas para a redução da letalidade violenta, passando a incluir não só os homicídios dolosos e latrocínios — contemplados no decreto inicial –, mas também lesões corporais seguidas de morte e autos de resistência. Tal situação demonstra o reconhecimento do governo da existência de excessos no emprego deste dispositivo.

Para a secretaria de segurança pública, assim como para alguns estudiosos da segurança e de organizações sociais, a implementação das UPPs nas favelas e periferias foi uma forma de combate ao tráfico de drogas. Ao contrário, familiares e moradores de favelas afirmam que esta política representou mais uma forma de controle da população negra e pobre. Juliana Farias, pesquisadora sobre o tema e apoiadora do movimento de mães de vítimas da violência policial, afirma que esta é, sem dúvida, mais uma prática racista dos poderes estatais:

“A política de segurança pública é racista. O funcionamento da burocracia estatal também se faz através de uma racionalidade racista. Não é possível falar em diminuição dos autos de resistência, só é possível enquanto ainda acreditarem que existe um inimigo a ser combatido. Lembrando que nessa lógica racista esse inimigo é necessariamente o homem negro morador de favelas e periferias”, conclui.

*Com a parceria do Fundo Brasil de Direitos Humanos.


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