Brumadinho: a avalanche de impunidade que consolida o crime e mata inocentes. Entrevista especial com Dário Bossi
Por: Ricardo Machado | 14 de Fevereiro 2019 – publicado no IHU-Online
No Brasil, há uma lição muito bem aprendida pelos setores políticos desenvolvimentistas, empresários da mineração e o mercado financeiro: o crime compensa. O desmoronamento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, ocorrido no último 25 de janeiro, está longe de ser um acidente. “Há evidências que tanto a empresa Vale S.A. como o Estado tinham informações sobre o perigo da barragem da mina Córrego do Feijão desmoronar. Por isso, chamamos este evento de crime, para o qual exigimos rápida responsabilização dos atores envolvidos, sendo processados criminalmente”, assevera Pe. Dário Bossi, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Mariana nos ensinou que a impunidade consolida o crime”, complementa.
Os dados mais atualizados dão conta de 165 pessoas mortas e outras 160 desaparecidas, entre empregados da Vale, terceirizados e população local. As demais espécies animais e vegetais somam outras milhares de vítimas da lama altamente tóxica. “Os crimes da Samarco e da Vale ensinam também que há uma aliança silenciosa entre empresas de mineração e Estado. As companhias extrativas precisam do aval do Estado para se instalarem e operarem, muitas vezes ignorando ou banalizando o processo de consulta e consentimento prévio, livre e informado das comunidades. O Estado precisa da mineração porque continua apostando nisso, aparentemente como uma das atividades de mais ‘seguro’ e rápido desenvolvimento”, pontua o entrevistado.
A principal justificativa de quem defende o modelo extrativista é a econômica. Ignora-se, contudo, a necessidade de transição do modelo dominante. “Em lugar de buscar a diversificação e transições econômicas que nos liberem da dependência do modelo extrativo, o Brasil mostra querer investir ainda mais nesta pauta, que não podemos mais definir como produtiva, mas destrutiva!”, acentua. As alternativas existem, o que não é interesse político. “O pós-extrativismo é um modelo de política macroeconômica que busca uma mudança radical no sistema de produção e consumo. Propõe e organiza transições, de um modelo saqueador dos recursos para um modelo pautado na economia local, na produção de bens duráveis, na diminuição do consumo, no desenvolvimento de uma noção de limites de produção e na reutilização de recursos. Pretende, assim, delimitar a mineração ao essencial, e reduzir também a circulação das matérias primas através do globo inteiro”, propõe.
Enquanto Dário Bossi respondia a entrevista, redes sociais e veículos de imprensa repercutiam a declaração do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles de que a memória de Chico Mendes era irrelevante. Menos que um “ato falho”, a fala do ministro apresenta de forma transparente e límpida o paradigma que orienta o atual governo. “Os seringueiros são considerados irrelevantes, os quilombolas descartáveis, os indígenas sobras a serem integradas. Mas a morte de cada vítima, quando se faz memória, mobiliza as pessoas, consolida a indignação, unifica as reivindicações, exige justiça”, destaca.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A tragédia humana e ambiental de Brumadinho, em Minas Gerais, não chega a ser uma surpresa, afinal não faltaram alertas dos riscos. Entretanto, o que significa o episódio em termos sociais e ambientais?
Dário Bossi – Há evidências que tanto a empresa Vale S.A. como o Estado tinham informações sobre o perigo da barragem da mina Córrego do Feijão desmoronar. Por isso, chamamos este evento de crime, para o qual exigimos rápida responsabilização dos atores envolvidos, sendo processados criminalmente. Mariana nos ensinou que a impunidade consolida o crime. A Articulação Internacional das Atingidas e Atingidos pela Vale também fez duas denúncias à Comissão de Valores Mobiliários, solicitando a destituição da diretoria inteira da empresa.
Os mitos da mineração sustentável, da tecnologia de ponta capaz de prevenir qualquer tipo de incidente, da responsabilidade socioambiental das grandes mineradoras, derreteram-se em poucos minutos, em Brumadinho. A Vale e muitas empresas investem muito para alimentar estes mitos. Bastante dinheiro foi destinado à propaganda, e também (até quando foi legalmente possível) ao financiamento de partidos e candidatos.
As comunidades, entidades e movimentos sociais que criticam estes mitos são constantemente hostilizadas, deslegitimadas e até caluniadas, espionadas ou perseguidas judicialmente. As comunidades sentem-se sem escuta e desrespeitadas. Mas estes mitos, que enchem a boca das mineradoras, desmoronaram em cima da vida de centenas de pessoas, e estão ainda rolando, rio abaixo, contaminando bacias inteiras.
Os crimes da Samarco e da Vale ensinam também que há uma aliança silenciosa entre empresas de mineração e Estado. As companhias extrativas precisam do aval do Estado para se instalarem e operarem, muitas vezes ignorando ou banalizando o processo de consulta e consentimento prévio, livre e informado das comunidades. O Estado precisa da mineração porque continua apostando nisso, aparentemente como uma das atividades de mais “seguro” e rápido desenvolvimento.
Mais que criticar a “indústria de multas do Ibama”, em nossa opinião, o Governo deveria perseguir a fábrica de licenças ambientais aceleradas, suspender o processo de flexibilização das leis ambientais, reverter o desmonte das instituições públicas voltadas à defesa e promoção dos direitos socioambientais.
Ataques aos ambientalistas
Ao contrário, quem vem sendo atacadas são exatamente as organizações empenhadas na defesa do meio ambiente e, mais recentemente, até a própria Igreja Católica, que há muito tempo está acompanhando as vítimas da injustiça ambiental, com a liberdade da vocação que vem do Evangelho.
Não podemos esquecer, enfim, que o grito de Mariana e Brumadinho não é isolado. Há muita violência que está acontecendo gota a gota, no silêncio e na invisibilidade das periferias, que são as “zonas de sacrifício” do capitalismo. Há barragens que matam sem desmoronar, pela contaminação de bário em Araxá ou de arsênio em Paracatu, ambas em Minas Gerais, por exemplo.
O trem de minério da Vale no corredor de Carajás continua a atropelar e matar animais e pessoas (foram 47 pessoas mortas e mais de 100 feridos, nos últimos 15 anos); uma reportagem da Agência Pública, recentemente, demonstrou que a empresa avalia se atender a demanda por segurança da população não tanto em base ao perigo real, mas pelo cálculo de cenários que avaliam, entre outros elementos, o dano à imagem da empresa, caso aconteçam acidentes.
IHU On-Line – Quais são as engrenagens políticas que colocam em funcionamento a máquina de moer o meio ambiente, os animais e as pessoas?
Dário Bossi – Há tempo, o Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração documenta as dimensões e os interesses da “bancada da mineração” no Parlamento brasileiro. Apesar de muitas críticas da sociedade civil organizada, dos sindicatos e dos ambientalistas, o Governo Temer aprovou com uma sequência de decretos, entre 2017 e 2018, o novo Marco Legal da Mineração, com o objetivo de “contribuir para a atratividade do setor, imprimindo maior transparência, agilidade e segurança jurídica ao setor mineral brasileiro”.
O passo seguinte pode ser a flexibilização da legislação sobre mineração em faixa de fronteira. O novo presidente eleito e seu governo têm interesses para liberar a mineração em terras indígenas. As mineradoras já registraram pedidos de pesquisa e exploração para um quarto das terras indígenas da Amazônia Legal (território correspondente à dimensão dos estados e SP e RJ).
Assim, em lugar de buscar a diversificação e transições econômicas que nos liberem da dependência do modelo extrativo, o Brasil mostra querer investir ainda mais nesta pauta, que não podemos mais definir como produtiva, mas destrutiva!
Há uma engrenagem interessante, que em jargão é definida como “as portas giratórias da mineração”. As companhias mineradoras, através de sua influência econômica, conseguem instalar no Governo seus representantes; em paralelo, empregam quadros ligados à burocracia do Estado. O jogo está feito: os interesses de ambos estão garantidos, e as grandes empresas conseguem, desta maneira, controlar, além do Congresso, também o governo e a Agência Nacional de Mineração. Nos últimos quatro anos, por exemplo, todo o segundo escalão do Ministério de Minas e Energias estava controlado pela Vale.
IHU On-Line – Como a sociedade civil tem se organizado para combater o lobby das mineradoras, madeireiros, agropecuaristas e empresas interessadas na exploração hidrelétrica?
Dário Bossi – Estamos tentando entrelaçar estratégias complementares; existem diversas redes e entidades que atuam em defesa das comunidades, na denúncia das violações de direitos e dos interesses elitistas do lobby das grandes empresas extrativas.
Nos territórios, há movimentos e pastorais sociais empenhadas ao lado dos atingidos/as. Eu, por exemplo, atuo há onze anos junto à rede Justiça nos Trilhos, empenhada no Corredor de Carajás, que recebeu recentemente o prêmio internacional “Direitos humanos e empresas”, na ONU em Genebra.
Uma menção de honra é para o trabalho corajoso, fiel e competente que há muitos anos desenvolvem a Comissão Pastoral pela Terra – CPT e o Conselho Indigenista Missionário – CIMI.
Há, depois, entidades e redes que estudam e denunciam as “ligações perigosas” entre poder econômico e político: entre elas, destaco o Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração. Neste campo, é necessário resgatar a transparência, a defesa e promoção dos bens comuns, características de uma política de grande respiro: “a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana” (LS 189).
A Igreja Católica, desde 2017, criou o Grupo de Trabalho sobre Mineração, em assessoria à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB: há um trabalho urgente e permanente de conscientização, para que as dioceses e paróquias tenham argumentos e orientações a partir dos quais tomar posição ao lado das vítimas, em conflitos provocados pela mineração.
A Rede Eclesial Panamazônica – REPAM atua junto a numerosas comunidades na Amazônia, escutando o grito, às vezes desesperado, de comunidades ameaçadas ou atingidas pelo extrativismo. Constata-se que os principais atores que ameaçam a Amazônia e os outros biomas do país são corporações de capital internacional, ou empresas nacionais que exportam quase por inteiro sua produção, contribuindo ao processo de reprimarização da economia nacional, a benefício dos clientes estrangeiros.
IHU On-Line – De que ordem são os desafios de sensibilizar a população para a necessidade de uma transição que vise um modelo econômico pós-extrativista?
Dário Bossi – A Carta Pastoral da Conferência Episcopal Latino-Americana – CELAM define extrativismo como “uma tendência desenfreada do sistema econômico de converter os bens da natureza em capital”. Papa Francisco alerta, de muitas formas, para a urgência de pôr um limite a esta tendência: “o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana (…) Passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a «espremê-lo» até ao limite e para além do mesmo” (LS 106).
O pós-extrativismo é um modelo de política macroeconômica que busca uma mudança radical no sistema de produção e consumo. Propõe e organiza transições, de um modelo saqueador dos recursos para um modelo pautado na economia local, na produção de bens duráveis, na diminuição do consumo, no desenvolvimento de uma noção de limites de produção e na reutilização de recursos. Pretende, assim, delimitar a mineração ao essencial, e reduzir também a circulação das matérias primas através do globo inteiro.
Resgata a produção ligada ao território, e, com isso, a valorização das raízes e da sabedoria dos povos. Visa recuperar as relações regionais entre países, redimensionando o modelo exportador, a partir da satisfação das necessidades econômicas mais imediatas.
Dialoga com o modelo de decrescimento, que também a encíclica Laudato Si’ propõe como a alternativa mais eficaz para desmontar o capitalismo, “economia que mata”, como frequentemente lembra o Papa. “A espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar a dinâmica do domínio e da mera acumulação de prazeres” (LS 222).
Sendo o extrativismo um sistema que chega a sugar energias e vidas da Criação inteira, o pós-extrativismo é uma opção profética, que requer também o cultivo de uma espiritualidade profunda, capaz de resgatar a essência das coisas e das relações.
IHU On-Line – Em entrevista ao Roda Viva, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles afirmou que Chico Mendes “é irrelevante”. O que a postura ilustra sobre a pauta ambiental do atual governo?
Dário Bossi – As vítimas são irrelevantes para este sistema. Tem uma página da exortação apostólica Evangelii Gaudium que é muito forte: “O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas resíduos, «sobras»” (EG 53).
Assim, os seringueiros são considerados irrelevantes, os quilombolas descartáveis, os indígenas sobras a serem integradas. Mas a morte de cada vítima, quando se faz memória, mobiliza as pessoas, consolida a indignação, unifica as reivindicações, exige justiça.
Podem-se barganhar os interesses de quem especula com o meio ambiente, pode-se resistir por um tempo nos equilíbrios precários do poder, mas a dignidade das vítimas, seu legado e seu apelo à resistência são permanentes, e não se contaminam por estas poucas palavras sem relevo.
IHU On-Line – O Brasil soma mais de 70 regiões com conflitos relacionados à mineração. Como a rede Igrejas e Mineração tem acompanhado os conflitos entre mineradoras e populações locais no Brasil e na América Latina? O que tem sido feito?
Dário Bossi – A rede Igrejas e Mineração, em estreita colaboração com o Grupo de Trabalho da CNBB sobre Mineração, está completando um mapeamento de todos os empreendimentos minerários no País, destacando aqueles onde há conflitos com as comunidades locais. Estamos identificando mais de 70 dioceses ou prelazias do Brasil onde existem conflitos por mineração. É um dado alarmante, que abre ainda mais os olhos da Igreja sobre sua missão de defesa da vida e da Criação.
Por isso, estamos oferecendo assessoria a bispos, sacerdotes, religiosas-os e cristãos leigos e leigas em diversos territórios. Em novembro de 2018, convocamos um “Encontro das comunidades atingidas por mineração em diálogo com a Igreja no norte e nordeste”. Foi na comunidade de Piquiá, Maranhão, internacionalmente conhecida pelas violações de direitos que sofre e pela resistência que soube articular, abrindo novos caminhos de libertação.
No ano passado, a rede Igrejas e Mineração promoveu também um seminário internacional de reflexão e debate sobre ecoteologia e mineração. Aproximou-se às comunidades atingidas por mineração em Paracatu, Minas Gerais, e somou-se ao acompanhamento delas.
Já atuávamos, a partir de outras articulações, em Brumadinho, Minas Gerais. Desde aquele trágico 25 de janeiro de 2019, estamos no município, presentes ao lado das famílias, em suporte à igreja local.
A Igreja está presente e frequentemente tem raízes profundas na vida do povo; conhece seu sofrimento e, em vários casos, tem tomado posições corajosas e claras em denúncia das violações da mineração, reivindicando direitos, proteção, reparação integral dos danos e respeito da vida.
A recente Carta Pastoral da Conferência Episcopal Latino-Americana – CELAM, “Discípulos missionários guardiões da casa comum”, aprofunda entre outros temas os desafios e as contradições da mineração, apontando para a missão da Igreja nestes contextos. A Carta foi escrita com a colaboração da rede Igrejas e Mineração, que está contribuindo também para sua divulgação na América Latina.
A partir deste importante subsídio, e considerando a urgência e gravidade dos conflitos no Brasil, estamos tentando organizar um encontro dos bispos de dioceses em conflito com a mineração.
Assim, nossa missão é estar próximos aos atingidos/as, formar consciência crítica, assessorar as igrejas, revelar a insustentabilidade do modelo extrativo.
Recentemente, começamos a aprofundar também a dimensão financeira da economia mineira. Além do valor do minério extraído e comercializado, uma das fontes de maior lucro das mineradoras é o mercado financeiro, que responde a regras diferentes e desvinculadas das operações com a matéria-prima.
Por exemplo, entre o crime ambiental de Mariana (2015) e aquele de Brumadinho (2019), em pouco mais de três anos, o valor de mercado da Vale mais que triplicou, chegando a quase 290 bilhões de reais. A empresa teve lucro líquido de 42 bilhões. Mesmo assim, entre 2015 e 2016, reduziu do 44% seus investimentos em ações de saúde e segurança.
Indignados por esta lógica de obediência aos mercados financeiros, através da rede Igrejas e Mineração estamos lançando uma campanha de desinvestimento de dinheiro dos capitais das mineradoras.
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