Bancas para a vida: estudantes da Turma de Direito do Pronera da UFPR defendem seus projetos de conclusão de curso voltados às comunidades
Na primeira quinzena de outubro de 2019, a Sala da Memória da Universidade Federal do Paraná, localizada no prédio histórico da Praça Santos Andrade, centro de Curitiba, foi ornada com estandartes que demarcam vidas, ancestralidades, territórios e lutas. Entre bandeiras de movimentos sociais e adereços que representam símbolos nordestinos, uma foto de turma de graduação estava sobreposta em um manto que trazia pintura de representação africana. Essa foi a composição escolhida pelo quilombola Jeferson da Silva Pereira para a mesa que recebeu seu orientador, o professor de Direito Ricardo Prestes Pazello, e os professores convidados para sua banca de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), defendida na manhã de uma sexta-feira: o advogado popular Fernando Prioste e o professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho.
Jeferson é estudante de Direito da UFPR da turma do Pronera, formada por beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária, vinculados ao INCRA. Além de quilombolas do Nordeste do Brasil, origem de Jeferson, que é do Território Quilombola Águas do Velho Chico, localizado em Orocó, Pernambuco, a turma formou para a advocacia estudantes com origem em assentamentos de movimentos sociais como o MST, dos sem terra, e o MAB, os atingidos por barragens. E o encerramento desse ciclo deixará registrado na Universidade, em sua maioria, análises e pesquisas que têm como objeto de estudo os locais de origem dos novos advogados.
Jaqueline Andrade, 23 anos, do Povoado Salgado, município de Monte Santo, BA, que realizou parte de seu estágio em Direito no Instituto Democracia Popular (IDP), é filha de pequenos agricultores e conta que sua pesquisa foi sobre a sua região de origem, que é de comunidades tradicionais de fundo de pasto, na Bahia, e fala um pouco sobre como é a regularização fundiária dessas comunidades tradicionais. “O trabalho é sobre uma lei específica, uma lei de 2013, que aborda sobre essa regularização fundiária. É uma característica dos trabalhos de conclusão de curso da nossa turma, trabalhar os temas de suas comunidades ou do seu movimento, da sua região, a gente pode perceber isso bastante nos trabalhos que foram apresentados e também uma característica das turmas do Pronera como um todo, já que o objetivo é que a gente alie a nossa prática, a nossa vivência, com o Direito, com esse ensino que a gente teve durante cinco anos”, conta a estudante. “A ideia é também a gente dar um retorno para as nossas bases, do que a gente aprendeu durante esse período aqui, servir de material de apoio, poder também contribuir com a luta”, define.
O professor Carlos Marés foi lembrado pelo professor Pazello, durante a banca de Jeferson, como participante da primeira e única banda indígena no curso de Direito da UFPR, e agora participou de banca quilombola e de outras três da turma do Pronera. Ele destacou que a banca representa um encerramento que é começo, fecha um ciclo para começar outro, e que considera de nível excepcional, que se equipara a bancas de mestrado.
A estudante Cleusa Maria dos Santos, acampada pelo MST em Rio Bonito do Iguaçu, no Paraná, defendeu em seu TCC o direito das populações do campo à educação, com o estudo de caso sendo a turma Nilce de Souza Magalhães, essa turma de Direito do Pronera exposta na fotografia da banca de Jeferson. “A escolha do meu tema de trabalho de conclusão de curso foi muito pautada nas experiências que eu tive. Eu fiz magistério, curso de formação de docentes vinculado com ensino médio, então eu tive contato durante o ensino médio com a questão da educação. Então por ter dado aula, por ter tido contato no acampamento com o magistério me fez sempre refletir nesses anos que eu estou na faculdade sobre a educação, sobre o porquê as populações não acessam esse direito e como pode esse direito estar constitucionalmente previsto e uma parcela da população ser segregada desse direito durante tantos anos. E também que era necessário, partindo de uma análise geral, falar sobre isso no trabalho de conclusão de curso, deixar isso registrado na faculdade e ter uma pesquisa que falasse sobre a experiência da nossa turma ali dentro”, disse.
A Sala da Memória estava cheia durante a defesa de Jeferson, com a presença das colegas de graduação. O mesmo ocorreu nas defesas de Jaqueline, de Maria, nessa ou em outras salas do prédio histórico, também com a Isa, com a Daiane, a Iara, a Ana, a Mônica, a Luana, a Rafaela. “O momento da banca foi muito emocionante porque estava o pessoal da turma, todos os meus amigos ali presentes. Então estar ali naquele momento de conclusão, eu estava feliz. As minhas fotos representam isso. Eu estava contente de estar encerrando esse ciclo que estava escrevendo e estudando algo que eu gosto com as pessoas que eu gosto, num ambiente muito tranquilo, ter o apoio de todo mundo foi bem diferente. Para mim foi essencial, foi feliz, estar fechando esse ciclo. Só me remeteu coisas boas e alegria de estar concluindo ao lado de pessoas que me ajudaram nessa trajetória desses cinco anos”, emociona-se Jaqueline.
Uma turma unida nas origens e na intenção de retomar a aplicabilidade de suas pesquisas junto às comunidades. O trabalho de Jeferson foi uma abordagem sobre a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho e os desafios para a construção de protocolos comunitários de consulta no Território Quilombola onde ele vive, em Pernambuco. Jeferson explicou que o tema era uma provocação pois a convenção da OIT foi pensada para os povos tribais e ele explorou casos de aplicabilidade nas comunidades quilombolas. Os protocolos seriam instrumento ou mecanismo? Um modelo de como fazer consulta? Seu TCC, explica, começa abordando a existência da convenção. “No segundo capítulo, falo sobre o meu território, os contornos sociais, para que a consulta seja parte da história da comunidade. É um recorte, um trabalho contínuo, com especificidades em cada unidade quilombola. É uma perspectiva de elaboração de protocolo, ideia de subsídios para reconstrução de protocolos a partir da realidade local. Voltar para a comunidade, discutir com ela e decidir. Mecanismos importantes para comunidades quilombolas sobre o direito”, disse, em sua apresentação. Sem pretensões de um modelo pronto, mas de trazer elementos, propôs quatro protocolos.
O advogado popular Fernando Prioste disse se sentir sujeito da história ao participar da banca de Jeferson, desse processo formativo, uma honra por já ter conhecido a comunidade quilombola de onde o estudante tem origem. Parabenizou pela trajetória e por se desafiar a fazer um projeto autoral em que está presente a reflexão crítica do Direito. Para Prioste, muitos estudantes da turma do Pronera fizeram a opção de se colocar ao escrutínio não somente da banca, mas do povo de suas comunidades.
Seu orientador, Ricardo Pazello, encerrou o momento protocolar lendo um poema, falando sobre se colocar individualmente nos processos coletivos. Narrou a trajetória de Jeferson na graduação, o descreveu como amoroso, otimista, que não esmorece. “Vejo nos seus olhos”, disse. Um estudante que chegou de chinelo e bermuda, de sua realidade pernambucana.
A turma de Direito do Pronera, agora encerrando esse ciclo de cinco anos, agora tem a missão de retornar seu aprendizado para suas áreas territoriais de origem. “É muito importante para nós, para as nossas comunidades, ter advogados populares. É essencial, para ajudar nas demandas das comunidades, na garantia dos direitos dessas comunidades que estão marginalizadas, que são oprimidas, que são violentadas. Então ter advogados populares, nesse sentido, para garantir direitos é muito importante. É para isso que o Pronera surgiu. É uma luta dos movimentos sociais do campo para que tenha filhos e filhas acampados, assentados, quilombolas com acesso à educação. Ter o próprio acesso, mas também pra gente contribuir com a luta, como um todo. O conhecimento acadêmico pode garantir direitos para as comunidades. Se tiver um despejo, saber como atuar no despejo, garantir o direito à regularização fundiária, aprender e poder atuar nesse sentido, ou até coisas básicas de garantias trabalhistas, previdenciárias, questões ambientais, nos conflitos socioambientais saber quais são as violações, quais são as garantias. A criminalização, casos de violência, de assassinato, de ameaça, saber como agir, tudo isso é muito importante”, explica Jaqueline.
Para Maria, esse acesso à educação permite até os sujeitos se reconhecerem como de direito. “O Direito possui ferramentas capazes de modificar essa realidade, mas em primeira mão é preciso se reconhecer como um sujeito de direito e a partir disso saber como utilizar essas ferramentas. O primeiro ponto, as populações do campo e eu me insiro também como parte, a gente precisa reconhecer os nossos direitos e saber que em determinadas ações e determinamos momentos existem violações ao nosso direito. Então, como que a gente se reconhece e como que a gente pode cobrar do Estado, cobrar do governo o acesso a direitos ou até como que a gente pode utilizar de ferramentas para ter acesso ao direito ou para denunciar violações desses direitos. O direito é primordial exatamente por isso, para modificar o conhecimento que o sujeito tem, que eu tenho, que as pessoas têm sobre os seus direitos. Ter conhecimento dos direitos, ter conhecimento dessas ferramentas modifica de alguma forma como que as populações vão se reconhecer, como que os direitos vão ser garantidos, como que a gente pode defender essa população que é historicamente marginalizada na história do Brasil. Então a possibilidade de a nossa turma formar sujeitos, formar advogados e advogadas que reconheçam sua realidade, que reconheçam a realidade de seu povo e a partir disse consiga fazer uma leitura de quais ferramentas contribuem para o acesso ao direito dessas populações é primordial. Ele transforma muita coisa na sociedade porque a falta de educação das populações do campo faz com que vários direitos sejam negados, porque as populações não cobram esses direitos, não conhecem meios de cobrar seus direitos. Então ter uma turma que nem a nossa, ter pessoas na comunidade que advoguem, que reconheçam isso e que consigam passar esse conhecimento para a comunidade como um todo é muito importante. Cada vez mais as populações vão ter consciência dos seus direitos e vão poder contar com pessoas que compreendam essas ferramentas”, explica.
Por Paula Zarth Padilha
Instituto Democracia Popular
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