Alice Martins, uma mulher indígena em contexto urbano
“Ser uma mulher indígena implica em conviver diariamente com o racismo e descaso da sociedade e do Estado”, sentencia
“Eu canto a dor /desde o exílio / tecendo um colar /de muitas histórias e diferentes etnias /(…) As pedras do meu colar / são história e memória / são fluxos de espírito / de montanhas e riachos / de lagos e cordilheiras / de irmãos e irmãs / nos desertos da cidade / ou no seio da floresta. (…) Eu tenho um colar / de muitas histórias / e diferentes etnias./ Se não me reconhecem, paciência. / Haveremos de continuar gritando / a angústia acumulada/ há mais de 500 anos.”
(Canção Peregrina, de Graça Graúna, autora indígena)
Alice Martins é uma mulher indígena no contexto urbano, liderança do Centro de Referência Afroindígena do Rio Grande do Sul, coordenadora do Levante Indígena Urbano do Rio Grande do Sul e da Rede Indígena POA, que foi uma rede criada para recolher donativos para as mulheres indígenas. Incentivada pela militância de seu pai, cresceu inconformada com as desigualdades sociais.
Moradora e liderança da Ocupação Baronesa, que ocupou em março de 2019, o imóvel da prefeitura estava abandonado há cerca de 10 anos no bairro Cidade Baixa. Alice também morou na Ocupação Saraí, em Porto Alegre e outra ocupação lá em Pelotas, onde fez o vestibular dentro do processo das ações afirmativas para os povos indígenas. Passou para Pedagogia e agora está tentando transferência da UFPEL para a UFRGS.
Como ela mesmo caracteriza, “ser uma mulher indígena no contexto urbano é ser coletiva, carregar uma comunidade, mas não dentro de uma aldeia que é o que as pessoas idealizam. A sociedade principalmente idealiza o que ela quer, porque ela não quer ver os indígenas ocupando espaços. A sociedade não quer saber que tem indígena no contexto urbano. Somos mais de 34 mil indígenas vivendo no contexto urbano.”
Confira a íntegra da entrevista, que compõe a Série Especial Mulheres na Política.
Brasil de Fato RS – Então Alice, gostaríamos que tu nos contasse um pouco da tua história, a tua trajetória.
Alice Martins – Meu nome é Alice Martins, tenho 38 anos. Sou uma mulher indígena no contexto urbano, sou liderança do Centro de Referência Afroindígena do Rio Grande do Sul, coordenadora do Levante Indígena Urbano do Rio Grande do Sul e da Rede Indígena POA, que foi uma rede criada para recolher donativos para as mulheres indígenas que são atendidas aqui nesse espaço que é o centro de referência.
Venho de acompanhar a trajetória do meu pai, desde os meus 12 anos, junto com ele nas reuniões do orçamento participativo, da comunidade. Ele foi um dos primeiros conselheiros da zona Leste, no bairro Agronomia, Vila dos Herdeiros. Fui crescendo vendo ele ser aquela pessoa que vai atrás para cobrar e reivindicar o que não tinha dentro da comunidade. Não tínhamos centro de saúde, creche, o ensino na escola era só até o quarto ano. E se precisava ter uma escola até o Ensino Médio dentro da comunidade para não precisar estar se deslocando de ônibus para outras escolas. Eu fui crescendo nesse meio ativo das construções coletivas dos movimentos sociais, das organizações que reivindicam políticas públicas que são tão negadas.
Meu pai e minha mãe vêm do município de Pejuçara no ano de 1978 para Porto Alegre. No interior não tiveram as oportunidades sendo descendentes de povos indígenas e sendo também urbanos. Eu costumo sempre dizer, não foi nós que procuramos a cidade, foi a cidade que nos atravessou. Essa invasão dos territórios, a retirada das terras de nós, povos indígenas, foi o que nos fez migrar para as capitais. Meus pais são de Pejuçara, o nome já diz, nome indígena. Sou descendente do povo Guarani e Kaingang.
Depois me afasto um pouco, casei, sou mãe de três filhos. Quando volto à militância, vou mais devagar, olhando, mas sempre fui muito inquieta, nunca me conformei com a questão da desigualdade. Eu sempre estive nesse meio, nas discussões do direito ao território, à cidade, pautando esses direitos que nos são tão negados.
Morei em duas ocupações. Na ocupação Saraí, lá em Pelotas, onde fiz o vestibular dentro do processo das ações afirmativas para os povos indígenas. Passei para Pedagogia e estou tentando transferência da UFPEL para a UFRGS. E agora estou na ocupação Baronesa.
BdFRS – Na discussão sobre a comunidade/povo indígena, o imaginário quase sempre nos remete à aldeia, nos esquecendo, dos indígenas de contexto urbano. Queria que nos falasse sobre isso, e sobre ser uma mulher indígena nesse contexto.
Alice – Sobre como é ser uma mulher indígena no contexto urbano, é ser coletiva, carregar uma comunidade, mas não dentro de uma aldeia que é o que as pessoas idealizam. A sociedade principalmente idealiza o que ela quer, porque ela não quer ver os indígenas ocupando espaços. A sociedade não quer saber que tem indígena no contexto urbano. Somos mais de 34 mil indígenas vivendo no contexto urbano.
Quando a gente fala no contexto urbano não estamos falando de um indígena que saiu de dentro da aldeia do Interior e veio para a Capital. Estamos falando de indígenas que nunca moraram na aldeia, que seus pais não moraram na aldeia, que seus avós talvez não tenham morado na aldeia, mas que ele não deixa de ser indígena. Ele não deixa de ser coletivo, não deixa de carregar uma comunidade junto com ele, que antes dele vieram seus ancestrais e os nossos ancestrais viviam todos juntos, em comunidade.
É importante fazer essa discussão e eu não falo só da questão do imaginário da sociedade, não. A gente sofre muito preconceito dos nossos parentes aldeados, nós que vivemos no contexto urbano porque infelizmente o processo de colonização atravessou violentamente os povos indígenas, e alguns, não estou falando dos meus parentes, mas em sua maioria, eles têm a sua lógica purista, de que indígena é só aquele que viveu dentro da aldeia, que os pais nasceram na aldeia, que os avós nasceram na aldeia.
Eles acabam renegando toda a trajetória de uma pessoa que vive no contexto urbano porque ela teve duas outras gerações violadas de viver dentro de uma aldeia, como se aquela pessoa carregasse essa culpa.
Eu falo isso só para entender como foi difícil eu chegar a tomar a decisão de pautar isso, de me colocar como ferramenta para pautar a questão dos indígenas em contexto urbano em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. É muito difícil, já temos todo o preconceito e a invisibilidade da sociedade, dos órgãos competentes que deveriam também nos atender. E ainda quando você sofre violações e opressões também dos parentes, como eu disse, não é todos, é bem difícil, tem que ter muita força para trazer essa pauta à tona para fazer essa discussão, para formar coletivo como esse que temos, que é o levante indígena urbano do RS, fazer com que outros parentes se fortaleçam junto, porque ser indígena é ser coletivo, isso sempre foi e tem que continuar sendo assim, nós somos nações.
E outra, ninguém faz nada sozinho, então se a gente tem que gritar, temos que se levantar, temos que ser nós, ser coletivamente. Esse gritar coletivamente, o que grita junto de nós é a nossa ancestralidade, o nosso empoderamento, a nossa autoafirmação de que nós sabemos quem somos e que nossos ancestrais caminham conosco nos fortalecendo de que que estamos fazendo, reivindicando políticas públicas, reivindicando acesso, reivindicando direitos negados, reivindicando territórios em forma de retomada, é essa luta, assim tem que ser, coletivamente.
Então eu me sinto feliz de poder ter esse coletivo, esse levante dos povos indígenas do contexto urbano no RS, de fortalecer os meus outros parentes, de outros parentes me procurarem para falar isso, para dizer que minha bisavó é indígena.
Temos que lembrar que nossas bisavós foram pegas no laço, foram levadas, trocadas, escravizadas, violentadas, mas os próprios parentes aldeados parecem que querem esquecer. Querem deixar que fique assim, renegando os parentes do contexto urbano. A luta era para ser junta, povo de aldeia, povo do contexto urbano, somos nação, mas não, passamos por esse preconceito, dessa lógica purista que ainda habita a cabeça de muitos parentes aldeados.
A identidade é intrínseca, ela está dentro de cada um de nós, então quando a gente grita, quando se levanta, a nossa ancestralidade está gritando junto, está nos acompanhando nessa autoafirmação de quem somos, nesta batalha diária que é de reivindicar território, políticas públicas, os direitos que nos foram negados, que nos foi violado, que perdura 520 anos.
A gente se levanta e grita, se autoafirma nas nossas avós, bisavós, tataravós que sofreram a violência, o abuso, a tortura, que estão caminhando junto também clamando por justiça. Por isso que eu costumo dizer que o corpo de uma mulher indígena é o território, a ancestralidade, ele é um corpo político, e ele é um corpo político que tem que estar em movimento, que tem que estar reivindicando políticas públicas, direitos violados, acesos negados, tem que estar ocupando os espaços de poder, tem que estar se colocando junto à sociedade porque nós fazemos parte dela.
E a sociedade que nos inviabiliza, que nos coloca à margem, que diz que o indígena é preguiçoso, vagabundo, não! Nós já estamos ocupando espaços de poder, temos uma deputada federal que é indígena, temos grandes intelectuais indígenas, escritoras, temos muitos indígenas ocupando espaço dentro da sociedade e assim tem que ser. E aqui no RS, o levante indígena urbano que se criou dentro do espaço, que é o centro de referência, é isso que ele busca, é esse grito, esse levante que ele vai continuar fazendo, pautando, e ele pauta junto com a discussão dos indígenas do contexto urbano, identidade afroindígena.
Para mim o povo indígena e o povo negro são povos irmãos, porque quando o povo negro foi trazido da África, escravizado, dentro daqueles navios, como eles fizeram aqui para se comunicar, poder fugir para criar os quilombos? Foi junto dos povos indígenas, e nós temos muitos parentes afroindígenas. Por isso o centro de referência se chama centro de referência afroindígena porque traz também a discussão dessa pauta, da identidade afroindígena.
BdFRS – Como tu vês a participação das mulheres indígenas, engajamento na vida social/política ao longo dos anos? Falasse em apagamento das histórias, indígenas, negras. Como reverter isso?
Alice – A questão política, para nós povos indígenas, mulheres indígenas, temos visto muito de leve. Temos a Joênia Wapichana (Rede-RO), Sônia Guajajara, e algumas mulheres em alguns outros estados também que se levantaram e se colocaram na linha de frente para estar ocupando esse espaço na política. O povo negro também tem mulheres ocupando esse espaço, mas é muito pouco, é para preencher as cotas partidárias. Tem que mudar muita coisa, tem que desconstruir muita coisa, construir novamente. Teria que se construir uma outra sociedade, uma outra forma de fazer política, uma outra forma de se fazer tudo, de se fazer novamente esse país.
Sendo que as mulheres não vêm agora na construção política porque nós temos a Eliane Potiguara que em 1988 participou da Constituinte, reivindicando a questão da educação indígena, o direito das mulheres indígenas. Temos muito pouco espaço na política.
BdFRS – Como os temas como feminismo, machismo, violência contra as mulheres se apresentam dentro do contexto indígena, seja urbano ou da aldeia? Que outras pautas se apresentam como urgentes e necessárias de discussão?
Alice – Discutir a igualdade de gênero tanto no contexto urbano quanto na aldeia é extremamente necessário, não que eu já não faça essa discussão com meu coletivo pautando isso. Mas acho que dentro da aldeia também é muito necessário que se reformule isso, mas aí eu já tenho que deixar para quem vive no contexto de aldeia para falar sobre isso. O machismo e a violência contra as mulheres existem em qualquer contexto, infelizmente. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, a gente não tem o aparato da Lei Maria da Penha, em vários estados as mulheres indígenas não têm o aparato dessa lei para a questão da violência doméstica.
Não posso falar de dentro da aldeia porque não sou de dentro da aldeia. Falo em função dos relatos que ouço, mas teria que ser pautado o machismo, a violência contra as mulheres porque tem que se ter igualdade de gênero. A mulher é tão capaz quanto o homem, ela executa muitas tarefas, ela é capaz, ela carrega uma ancestralidade, ela carrega um bem viver coletivo. Não costumo falar em feminismo porque essa palavra não me contempla, e assim como converso com várias outras parentas intelectuais indígenas que fazem a discussão de que essa palavra não nos contempla.
Outra pauta de discussão urgente é a questão das mulheres indígenas artesãs não sendo consideradas como artistas, principalmente agora com a Lei Aldir Blanc, e elas são artistas. O artesanato que elas produzem deveria ser patrimônio da humanidade. Falta então essa política pública para essas mulheres artesãs serem vistas como artistas, porque não é só o artesanato, é o canto, a dança, a questão alimentar, que muitos inclusive comem no dia a dia. Grande parte da alimentação tem envolvido os saberes indígenas, a questão das plantas medicinais, as ervas de vida e cura. Essa questão cultural deveria ser olhada de uma maneira mais ampla e colocar essas mulheres no seu verdadeiro lugar de protagonismo com relação a questão cultural de artistas como artesãs, como produtoras de arte ancestral.
BdFRS – Como está a situação aqui no estado da realidade indígena durante a pandemia?
Alice – Eu faço parte da Articulação Nacional de Indígenas do Contexto Urbano e Migrantes, que discute também indígenas do contexto urbano de toda a América Latina e nós temos feito os debates e as discussões de todos os estados, mas vamos falar especificamente do RS.
No RS tivemos algumas mortes de parentes por covid-19 (de acordo com o levantamento do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, o RS registra até o momento 6 óbitos), infelizmente. Tivemos aldeias infectadas, que foi a aldeia Kaingang, na Lomba do Pinheiro, todos se recuperaram. (Dados da Secretaria Estadual da Saúde apontam, até essa terça-feira (28), 369 indígenas infectados)
Nós, no momento que começou a se falar que a pandemia estava ficando cada vez mais grave, como centro de referência, como levante indígena urbano criamos a Rede Indígena POA. Estamos subsidiando o dia a dia das coisas mais básicas para as mulheres indígenas artesãs que são atendidas aqui pela casa, que é alimentos, álcool gel, produtos de higiene, limpeza, colchões, roupas de inverno enfim, tudo que seja necessário para que elas continuem dentro da aldeia em segurança e não venham se contaminar com o coronavírus, para que fiquem com suas famílias em segurança. A ação do centro de referência é essa, ela é feita mobilizando a sociedade civil através de campanhas de financiamentos coletivos. Estamos no nosso segundo financiamento coletivo, a arrecadação dos donativos e desses outros itens são feitas pelo centro de referência, as pessoas vêm até aqui e trazem, nós higienizamos tudo antes de levar para a aldeia. Nossa ação de combate ao coronavírus é essa, mas sabemos que a situação no estado é bem grave.
BdFRS – Além da causa indígena tu tens militado também na questão da moradia e do direito à cidade. Como está esse debate?
Alice – A questão da causa indígena, a questão do direito ao território, do direito à cidade e da luta por moradia, isso vem em uma construção conjunta. Eu faço parte de coletivos que discutem o direito à cidade, faço parte do Atua POA, do Fórum que discute a Região 1, a Região do Centro.
Estamos trabalhando no centro de referência a defesa da retomada de um território ancestral, mas também continua pautando as outras questões do direito à cidade com outros coletivos. Mesmo na época da pandemia temos feito reuniões, encaminhado documentos e segue fazendo esse debate junto aos demais coletivos que estão na linha de frente, trazendo essa provocação e essa disputa.
Importante lembrar que a pauta do centro de referência se dá em uma retomada de território ancestral. Então ela faz a discussão do que é o direito à cidade muito mais ampla, não visando a questão de reivindicar propriedade, de estar participando da construção do capital, porque se estamos retomando estamos retomando algo que nos foi tirado, roubado.
Então como povos indígenas, seres coletivos, estamos reivindicando não só para um, para dois, mas para vários, é importante essa discussão. E seguimos nos outros coletivos pautando junto a questão do direito à cidade e a luta pela moradia.
BdFRS – Que sociedade tu acreditas que virá pós pandemia? Pode-se esperar uma real mudança?
Alice – Após a pandemia eu acredito que as pessoas tenham um pouco mais de empatia e se torne mais humana, é só nisso que eu penso, eu quero acreditar nisso, que depois de passar por tudo isso, as pessoas possam ficar mais humanas, se engajar mais em mudanças reais para essa sociedade que é tão desigual. Eu acredito nisso, não sei se vai ser real.
Como apoiar a Rede Indígena Porto Alegre contra o Coronavírus
:: Doações em dinheiro podem ser feitas pelo site da campanha diretamente na plataforma Benfeitoria, por depósito bancário ou boleto.
:: Para depósito bancário, os valores podem ser encaminhados para a conta abaixo:
Banco: Nubank (Banco 260 – Nu Pagamentos S.A)
Agência: 0001
Conta: 23523502-2
Nome: Raquel de Cássia Rodrigues Ramos
CPF: 003.313.002-73:: Alimentos, agasalhos, cobertores, produtos de higiene e fraldas podem ser entregues no Centro de Referência Afroindígena do Rio Grande do Sul (Travessa Comendador Batista, 26), mediante agendamento prévio com Alice (51 9849-13118) e seguindo as normas de segurança e de saúde.
Edição: Katia Marko
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