A biodiversidade é o melhor remédio contra pandemias
por Diana Aguiar e Bruno Santiago
A história da devastação do Cerrado reúne todos os ingredientes para a potencial eclosão da próxima pandemia global. E as políticas de incentivo ao agronegócio e à grilagem de terras contribuem para intensificar esse cenário
Há um silêncio ensurdecedor na mídia sobre as causas dos surtos recorrentes de doenças zoonóticas nos últimos 20 anos, tais como Covid-19, gripe aviária e gripe suína. No entanto, diversos estudos vêm, há anos, mostrando como a destruição da biodiversidade causada pela produção agrícola industrial é o principal vetor da eclosão, mutação e proliferação dos patógenos que causam estas doenças. E como, se nada for feito para mudar, é uma questão de tempo para o surgimento de novos vírus e doenças.
A história da devastação do Cerrado reúne todos os ingredientes para a potencial eclosão da próxima pandemia global. E as políticas de incentivo ao agronegócio e à grilagem de terras contribuem para intensificar esse cenário. Por outro lado, a resistência dos povos dos cerrados, das florestas, dos campos e das águas em seus territórios é o melhor caminho para promover a conservação da biodiversidade, que é o melhor remédio contra pandemias.
Para entender mais sobre essas conexões entre os povos dos cerrados, a conservação da biodiversidade, os conflitos agrários e a prevenção de futuras pandemias, convidamos membros da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado para uma oficina virtual no marco do Fórum Popular da Natureza: Larissa Packer, advogada popular da GRAIN América Latina; Abeltânia Souza, agente da Comissão Pastoral da Terra na Bahia; Miraci Silva, animadora de Sementes do Grupo de Intercâmbio em Agroecologia (GIAS) no Mato Grosso; e Claudeilton Luiz, advogado popular do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e da Via Campesina.
A roda de conversa foi moderada pelo jornalista e fundador do Observatório De Olho nos Ruralistas, Alceu Castilho, e também contou com depoimentos em vídeo de Valdivino Marques, agricultor familiar da Comunidade Matinha, do município de Guaraí (TO); de Raimunda Nonata, quebradeira de coco babaçu, e do agricultor Leandro Santos, ambos da Comunidade Quilombola Cocalinho, situada no município de Parnarama (MA).
Na primeira parte deste artigo, teremos a oportunidade de aprender a partir das experiências de duas organizações da Campanha – GRAIN e CPT – sobre o papel central do agronegócio na eclosão e proliferação de pandemias zoonóticas e como, apesar disso, o agronegócio é tratado como atividade essencial, causando conflito e devastação, mesmo em tempos de Covid-19.
O agronegócio é a causa das doenças zoonóticas
A GRAIN completa, em 2020, 30 anos acompanhando o comportamento da cadeia global corporativa de alimentos e suas consequências econômicas, sociais e ecológicas. Dentre estas, a organização tem documentado a eclosão, proliferação e dispersão de epidemias e de doenças zoonóticas – que partem de animais e alcançam humanos –, como a Covid-19. Convidamos Larissa Packer para nos ajudar a refletir sobre o risco que o modelo do agronegócio no Cerrado nos impõe.
Larissa, a partir da experiência da GRAIN, qual a relação entre o agronegócio e as pandemias, como a que estamos vivendo?
Fala-se muito em “voltar ao normal” e de que saia uma vacina logo, mas se fala pouco de como a realidade atual do modo de produção e consumo dentro do sistema capitalista é a causa fundamental para a geração de pandemias. É possível que um novo Covid seja gerado a qualquer momento, assim como nós vimos nos últimos 20 anos, uma aceleração sem precedentes da geração de mutações de vírus patogênicos capazes de gerar doenças e zoonoses. Tem ocorrido cada vez mais saltos de vírus entre espécies, alcançando os seres humanos de uma forma patogênica, gerando doenças. Então, o que a mídia acaba não falando muito é que a salvação disso tudo não é criando vacinas. A vacina vai ser muito boa sim como instrumento de mediação daquilo que já eclodiu, mas nós não temos como ficar de epidemia em epidemia, de vacina em vacina, de isolamento para flexibilização. Então, uma coisa central para a compreensão da ameaça de novas crises sanitárias e econômicas é realmente pensar o modo como o ser humano se reproduz na superfície terrestre, como ele ocupa a superfície da terra adquirindo cada vez mais terras dentro de um paradigma de homogeneidade, ou seja, homogeneíza a superfície da terra, incorporando cada vez mais território para a produção de pouquíssimas espécies e variedades para uma cadeia de produção alimentar muito empobrecida nutricionalmente e organizada por corporações.
Poderia nos explicar como são geradas doenças zoonóticas, como o Covid-19?
Os vírus, bactérias, microorganismos existem dentro do metabolismo de qualquer organismo. Agora, quando há uma diversidade genética, essa diversidade consegue conter a expressão ou uma mutação patogênica ou mesmo que gere a doença, porque os organismos são diversos. Assim, dentre as causas estruturais das epidemias, eu gostaria de ressaltar algo que os epidemiologistas vêm falando há 30 anos. Não é uma novidade, mas existem três principais causas estruturais da eclosão de doenças zoonóticas e da vulnerabilidade humana diante da criação e da dispersão dessas epidemias.
Qual a primeira causa estrutural e como ela se expressa no Brasil e no Cerrado?
A primeira causa é a destruição acelerada dos ecossistemas, dos habitats, com essa homogeneização de paisagens. Você tem, cada vez mais, uma produção industrial do espaço rural, incorporando milhares de hectares para a produção de monocultivos. Aqui no Brasil há a realidade do cultivo da soja e da cana, intercalados com milho. No plano do Cerrado é muito impressionante a quantidade de hectares destinados à soja. E esses monocultivos de larga escala destinados à exportação precisam produzir numa escala e numa intensidade que leva o agronegócio a considerar a floresta, a biodiversidade, e os povos que habitam como obstáculos ao desenvolvimento. As cadeias de valor dessas commodities valorizam a terra limpa: quando se passa o correntão e desmata-se a terra, ela se valoriza no minuto seguinte, os grileiros ganham muito dinheiro. Não tem como a gente desconsiderar que há um financiamento histórico, desde uma economia de plantation lá nos 1500 com os monocultivos de cana-de-açúcar. E os vários ciclos econômicos estão atrelados aos extensos monocultivos, ao financiamento externo de países estrangeiros, bancos, fundos de pensão e investimento que valorizam a terra limpa, sem a biodiversidade, com desmatamento. Isso significa financiamento para o estabelecimento de laboratórios de futuras pandemias, de crises sanitárias, além de outras crises: crises econômicas, crises de soberania e segurança alimentar.
Você falou que a produção industrial do espaço leva a se considerar os povos, a biodiversidade, as florestas como obstáculos. Como isso se conecta com as pandemias?
Há uma expulsão desses povos cada vez mais para centros urbanos, onde há um aglomerado de gente em periferias urbanas sem acesso a saneamento, água e alimentação saudável, o que também gera organismos humanos imunodeprimidos. E essas cidades estão cada vez mais próximas dos ambientes de animais selvagens, gerando o contato mais próximo com esses animais que já têm esses micro-organismos, bactérias e vírus, contidos até então pela diversidade genética.
Então, esse modelo que expulsa os povos de seus territórios gera cada vez mais paisagens homogeneizadas, repletas de monoculturas vegetais e animais.
Sim, e agora, sobre uma paisagem homogeneizada, os vírus e microorganismos, para sobreviver, acabam sendo selecionados por esse modo de produção homogêneo, eles lutam para sobreviver nesse ambiente hostil. Invariavelmente essa mutação, num ambiente homogêneo, acaba se comportando como praga. Um inseto que antes era um polinizador, dentro de um ambiente de monocultivo, em que há uma pressão de seleção para aquele inseto, ou seja, altas doses de agrotóxicos para acabar com esses insetos acabam por selecionar uma mutação resistente, nomeada pelo agronegócio de “praga” (por exemplo, eu posso citar lagartas resistente ao milho Bt, a mosca branca). Então, nós vemos milhões de hectares sendo ocupados por uma ou duas espécies, como milho ou soja, onde antes você tinha centenas de espécies típicas do Cerrado (pequi, buriti, baru); e dentre estas espécies poucas variedades, geralmente variedades atreladas a um pacote corporativo tecnológico com sementes transgênicas que garantem uma alta produtividade em cada safra, se associadas à aplicação de agrotóxicos. Porque no pacote tecnológico, determinada planta é desenvolvida para ser resistente àquele agrotóxico, ou seja, todo ecossistema ao redor quando é atingido pelo agroquímico morre, mas aquela semente transgênica se mantém viva, mas com um resíduo imenso de agrotóxico. Então, a doença ou praga não se gera por si, ela é gerada exatamente por essa condição de homogeneidade de espécies. Com altas aplicações de agrotóxicos para sobreviver, há uma pressão de seleção de vírus, bactéria ou micro-organismo resistentes para sua própria sobrevivência, é o modelo de produção que gera estas pragas.
E aí está, então, o segundo vetor para geração de pandemias?
Sim, o segundo vetor estrutural para geração de pandemias, e talvez o principal, é a produção industrial de carne. Cerca de 60% das doenças infecciosas no mundo, segundo epidemiologistas e também dados da OMS e da FAO, vêm de animais. A questão é que nós temos três vezes mais população animal, do que gente no mundo hoje. Exatamente pela produção industrial de animais em situação de confinamento: são mega galpões onde se cria uma raça selecionada com melhoramentos genéticos também para servir a esse modelo industrial de produção de carne, para abastecer a demanda em escala global. A uniformidade genética dessas raças, principalmente porcos e aves, criadas à base de aplicação de cerca de 70% dos antibióticos produzidos no mundo, que são usados para esses ambientes de produção animal em confinamento, gera raças imunodepressivas. Então, qualquer agente estranho, qualquer “outro” é visto como inimigo, porque ele é capaz de dizimar o plantel inteiro de animais em confinamento. É um modelo oposto à criação tradicional, na qual raças crioulas, geralmente convivem dentro do conhecimento tradicional e de ecossistemas diversos que absorvem mutações e contém epidemias.
E a terceira causa?
A terceira causa é a escala global do modo de produção de importação e exportação. Este ano o Brasil ultrapassou os EUA e se tornou o maior produtor e exportador de soja do mundo. Nós exportamos só no mês de abril deste ano, em meio à pandemia, 9 milhões de toneladas de soja. A soja que é consumida pelos porcos na China vem do Brasil, e os porcos da China abastecem a China e também vários outros países da Ásia e Pacífico. Os porcos produzidos nos Estados Unidos também vão para China. Então, a agricultura ou a criação animal pode ser local, mas o sistema alimentar é completamente globalizado nessa escala impensável. Ela exige uma rota logística de importação e exportação que leva a outro fator de vulnerabilidade diante de epidemias, que é a dispersão em voos, em hidrovias, em ferrovias e rodovias, em navio. Então, a dispersão passa a ser global, como aconteceu com a Covid-19, e isso gera a pandemia. Três grandes fatores ligados então ao modo de produção agrícola Industrial.
A forma de apropriação do Cerrado pelo agronegócio faz deste um espaço, um “laboratório”, de possíveis novas pandemias?
Na medida em que o Cerrado vai sendo produzido como espaço de geração de commodities, o Cerrado como mercadoria, passa a ser um caldeirão de futuras pandemias. 50% dos cerrados foram desmatados ao longo dos últimos 40 anos. Entre 1980 e 2010, o Cerrado perdeu 31% de sua população rural, com 3,6 milhões de pessoas expulsas do campo para ocupar as periferias urbanas. Entre agosto de 2018 a julho de 2019, o INPE aponta que 640 mil hectares (cerca de quatro vezes a cidade de São Paulo) foram desmatados. Tudo isso para hoje o Cerrado produzir 52% de toda a soja cultivada no Brasil. O Mato Grosso sozinho foi responsável por 202 mil ha, sendo que 64% em áreas maiores que 1500 ha, respondendo por 28% da última safra de soja no país. A fórmula se repete: florestas, povos e biodiversidade vistas como obstáculos ao desenvolvimento de paisagens homogêneas para abastecer a intensidade e escala do modo de produção e consumo. O conceito de desenvolvimento, o modo de uso e ocupação do solo e o modo de produção e consumo têm de mudar, e a resposta está nas ecologias e não em mais monoculturas.
E o que os povos do Cerrado podem nos ensinar sobre isso?
Os povos falam de outras formas sobre isso, mas nos falam exatamente disso. Eles têm a plena noção de que a destruição ambiental e as monoculturas levam a um rompimento do metabolismo dos organismos em escala de ecossistema até o indivíduo, causando doença e depressão imunológica. Quem vive no campo e os estudiosos vão se encontrar no mesmo ponto da crítica às monoculturas e defesa das ecologias. É ecologia de modo de produção de vida, ecologia de diversidade genética, ecologia de saberes associados complexos de mais de 12 mil anos, desde a revolução agrícola. A biodiversidade é a expressão da história de um espaço incorporado à cultura de um grupo. A sociobiodiversidade representa as digitais históricas dos povos sobre o meio. O milho, por exemplo, não existia na humanidade, é uma criação humana. Podemos dizer isso de diversas outras espécies que são criação de um criterioso processo de seleção e melhoramento genético da biodiversidade através da construção de conhecimentos, técnicas e tecnologias sociais, como a agroecologia. Ao longo de algumas décadas, as pessoas foram indo para cidades e esse conhecimento tradicional dificílimo transgeracional, de mais de 12 mil anos, vai se perdendo pelos cercamentos territoriais – erosão genética e cultural.
O que fazer diante de tudo isso?
Precisamos urgentemente rever o fato de que 80% da população brasileira está sobre 1 ou 2% do território nacional, o fato de que a concentração de terras no Brasil é uma das mais altas do mundo, rever a forma que a gente ocupa o espaço. A reforma agrária não é mais somente uma questão de classe, não é mais reivindicada somente como uma maneira redistributiva da renda e da riqueza. Reforma agrária é questão existencial para continuidade da espécie humana na terra, é uma questão de ecologia, possibilidade pragmática de futuro.
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Larissa nos traz o desafio e uma agenda propositiva para a sua superação. Se essas causas estruturais forem levadas a sério, se quisermos realmente superar a ameaça de pandemias, então é fundamental que se faça alterações consideráveis ao modelo de produção do agronegócio e, por outro lado, incentivo aos agricultores familiares e camponeses que geram alimentos frescos, saudáveis, diversos em circuitos curtos. No entanto, o que vemos é justamente o contrário. Mesmo o agronegócio global sendo o causador de recorrentes pandemias, o setor no Brasil é tratado como atividade essencial em tempos de quarentena.
O agronegócio não faz quarentena
Abeltânia Souza, conhecida como Tânia, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Bahia, aproveitou o espaço no Fórum Popular da Natureza para apresentar elementos sobre a continuidade dos conflitos no campo em tempos de pandemia. A CPT é uma das fundadoras da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e tem, desde sua criação há 45 anos, a missão de estar com os povos da terra, sobretudo em situações de conflito.
Em um estudo publicado no ano passado, o pesquisador Carlos Walter Porto-Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense (UFF), analisa os dados dos conflitos no campo publicados pela CPT. ‘’De um total de 7.353 localidades onde, entre 2003 e 2018, ocorreram conflitos por terra no campo brasileiro, 40,5% delas estavam nos cerrados e suas áreas de transição’’, destaca o pesquisador, que nos ajuda a compreender a conjuntura de devastação do bioma.
‘’Para que se tenha um parâmetro mais consistente, a Amazônia e suas áreas de transição tiveram, no mesmo período, 34% das localidades em conflito no campo sobre o total de localidades em conflitos no país. Ou seja, as duas regiões foram marcadas por uma enorme conflitividade abrangendo, somadas, 74,5% do total de comunidades com conflitos no período considerado’’, finaliza Carlos Walter.
“O que vemos que está muito ligado ao processo de grilagem e de ocupação histórica do agronegócio nos últimos anos, principalmente desde a década de 70’’, explica Tânia, que não acredita em um cenário diferente para 2020. “A gente pode dizer que ‘agronegócio não está em quarentena’ porque continua investindo contra os povos. A situação mais agravante é que além da grilagem e dos processos de violência contra os povos do Cerrado e do campo no geral, as comunidades têm que lidar com a situação do próprio vírus’’.
De acordo com a experiência de Tânia, a porta de entrada para a transmissão do novo coronavírus em comunidades camponesas e tradicionais é o avanço dos grandes empreendimentos nos últimos meses. ‘’A gente pode citar, por exemplo, a realidade do norte de Minas Gerais, das comunidades geraizeiras do Vale das Cancelas, onde uma empresa de transmissão de energia foi responsável, através de seus trabalhadores, por disseminar o vírus em comunidades rurais e na cidade’’, denuncia.
A agente baiana também citou exemplos de proliferação do vírus em seu estado, mencionando casos das regiões de Caetité, Urandi e Guanambi, que também sofrem com o fluxo ininterrupto dos trabalhadores de empreendimento de energia, uma vez que essas redes de transmissão passam por dentro das comunidades.
Conflitos no Campo em tempos de pandemia
Para além da disseminação desenfreada do vírus, Tânia destaca também a ocorrência de conflitos nos territórios, citando exemplos de comunidades inseridas na região do Matopiba, considerada pela Embrapa “a grande fronteira agrícola da atualidade”, que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
“Agora nesse período, principalmente a partir de março, foram mais de cinco conflitos ocorridos em mais de cinco territórios, como é o caso das comunidades de Melancia e Morro d’Água, no Piauí, que passam por situações de violência explícita’’, afirma Tânia. Segundo nota pública divulgada pela CPT no Piauí em 23 de fevereiro, grupos armados têm ameaçado lideranças e moradores de comunidades da região que se posicionam de forma contrária ao avanço dos megaempreendimentos do agronegócio na região.
“Aqui em Correntina, no oeste da Bahia, não há pandemia que possa livrar as comunidades dos grileiros e dos fazendeiros. As populações de fecho de pasto – que usam áreas compartilhadas no Cerrado como espaço de concretização da vida – seguem sofrendo investidas nesse período de suposto distanciamento social, com situações como a da comunidade de Garapumba, que registrou boletim de ocorrência policial por serem violentados com a derrubada de benfeitorias das famílias, destruição de cercas e serem ameaçados’’, enfatiza.
Roubo das águas
Ainda tratando do oeste da Bahia, Tânia lembra que a região se encontra em uma posição estratégica para a implementação de monocultivos por ser abastecida pelos Aquíferos Urucuia e Bambuí, sendo marcada pela presença de nascentes e rios que, desde os anos 1970, por conta da expansão do agronegócio na região, têm secado e desaparecido dos territórios. “Eles têm avançado muito no processo de irrigação por meio da captação de água, tanto da água superficial dos rios como também a captação da água do subterrâneo’’, conta.
O Estado, de acordo com a agente da CPT, tem papel crucial nesse processo. ‘’O Inema [Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos] da Bahia, entre 2 de janeiro e 6 de junho de 2020, concedeu para a região oeste 48 portarias com autorização para supressão da vegetação nativa e desmatamento do Cerrado abrangendo cerca de 30 mil hectares de terra’’, destaca. Tânia também lembra que somente este ano o mesmo órgão ambiental concedeu 77 outorgas que dão direito ao uso de um 1,5 bilhão de litros de água por dia aos empreendimentos do agronegócio.
Sinais de esperança
Apesar da “boiada estar passando’’, Tânia encerra sua participação apontando para os sinais de esperança que, na sua visão, encontram-se nas resistências cotidianas dos povos e comunidades do Cerrado. “Os povos não estão parados, mesmo diante dessa realidade, os povos se encontram, buscam alternativas para continuar defendendo a vida. A biodiversidade não é só a cura da pandemia da Covid-19, mas eu acho que também da pandemia do agronegócio, a pandemia desse capital que é a mais cruel das doenças’’, sinaliza.
“Diante de tudo isso, eu me lembrei do trecho da poesia de Cora Coralina, da cidade de Goiás, que fala assim:
‘Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.’
A profilaxia já existe, ela é a biodiversidade e os povos do Cerrado. A profilaxia da cura dos erros e das violências é a organização dos povos nos territórios’’, finaliza Tânia.
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E com essa lembrança que nos traz Tânia da poetisa cerradeira, Cora Coralina, conheceremos, na segunda parte deste artigo, relatos de alguns representantes dos povos dos cerrados sobre a profilaxia futura que já estão construindo no presente dos territórios.
Diana Aguiar é Assessora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.
Bruno Santiago é Assessor de Comunicação da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e Especialista em Mídia, Informação e Cultura pela ECA/USP.
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